Leonardo Luz: “Entre boas intenções e péssimas consequências: a racionalidade econômica do crime e o fracasso do estado no Rio”

Leonardo Luz: “Entre boas intenções e péssimas consequências: a racionalidade econômica do crime e o fracasso do estado no Rio”

O crescimento do crime organizado é impulsionado por uma racionalidade econômica, onde os benefícios do crime superam seus custos, um cálculo distorcido por ações estatais equivocadas

A operação policial contra o Comando Vermelho no Rio de Janeiro, que deixou mais de uma centena de mortos, gerou grande comoção nacional e acendeu o temor de que o país se torne um dos muitos narcoestados que se proliferam na América Latina — controlados por organizações criminosas que estendem seus tentáculos para dentro da estrutura estatal, elegendo políticos, controlando juízes e promotores, atuando em setores legais da economia e subvertendo a atuação de agentes públicos em geral para a defesa de seus interesses.

            Diante desse risco, todos nós nos perguntamos: por que facções como o Comando Vermelho conquistaram tanto poder? A resposta passa pela ciência econômica, que explica como atores racionais, mercados ilegais e falhas do Estado formaram um terreno fértil para os ganhos de escala dos criminosos. A teoria econômica do crime, formulada por autores como Gary Becker, parte de uma hipótese simples e poderosa: indivíduos comparam custos e benefícios ao decidir cometer um crime. Se o retorno esperado (lucro do crime multiplicado pela probabilidade de impunidade) excede o custo (punição esperada, risco físico e custo de oportunidade), o crime torna-se racional.

            Como agentes racionais, os criminosos buscam, portanto, maximizar a utilidade obtida por suas decisões e encontram mecanismos que ampliam os retornos da transgressão criminosa. Estudos empíricos importantes, como os de Fajnzylber, Lederman e Loayza, mostram que a desigualdade e o desemprego são combustíveis do crime violento. No Brasil, como apontam as pesquisas de Ignacio Cano e Julita Lemgruber, jovens de periferias ingressam no tráfico por perceberem que os ganhos de curto prazo da atividade criminosa superam em muito aqueles possíveis em atividades legais, funcionando como um mercado de trabalho alternativo.

            Há ainda os efeitos de políticas públicas desastradas que, como mostra Walter Williams em seu famoso livro Good Intentions, podem criar incentivos perversos que estimulam a desordem e a dependência social em estratos mais vulneráveis da população, tornando-os mais propensos a atividades ilícitas. Tais políticas, embora eivadas de boas intenções em sua formulação, tendem a enfraquecer normas de responsabilidade individual e de autoridade estatal — geralmente em nome da justiça social —, fazendo com que, paradoxalmente, o Estado atue para aumentar o apelo econômico do crime.

            A confluência desses fatores — ambiente de vulnerabilidade social, arcabouço jurídico-penal pouco punitivista e políticas públicas equivocadas — explica como, no Rio, o crime organizado floresceu em solo fértil. As facções nasceram no fim dos anos 1970, dentro dos presídios, quando criminosos comuns e presos políticos de grupos da esquerda armada — muitos com treinamento em países do bloco socialista — foram colocados juntos, especialmente no presídio de Ilha Grande, que deu origem ao Comando Vermelho. Essa associação permitiu que as facções desenvolvessem métodos de organização e operação que, conjugados à lucratividade do tráfico de drogas, possibilitaram o controle territorial do crime nas favelas fluminenses.

            A partir da década de 1980, o boom da cocaína no mercado internacional transformou o tráfico em um negócio de escala global, cujos lucros financiaram armas, rádios, veículos, redes de suborno e contingentes cada vez maiores de soldados, conformando as facções em grupos paramilitares com poderes antes impensáveis.

            A transformação de gangues criminosas em grupos armados com poderio militar capaz de enfrentar o Estado oficial não seria possível, contudo, sem a ajuda — mais uma vez — de políticas públicas formuladas por políticos ideólogos e burocratas profissionais. Sob o argumento de conter a violência policial nas comunidades, o então governador Leonel Brizola restringiu incursões policiais sem mandado judicial em áreas controladas pelas facções. Sob o guarda-chuva das boas intenções de proteger direitos civis, foram impedidas operações de contenção e de prevenção ao crescimento do controle territorial do crime. Como resultado, a ausência de coerção policial produziu um vácuo estatal que foi ocupado pelas facções, que se tornaram governos paralelos em territórios cada vez mais vastos, consolidando um poder armado que passou a arbitrar um número cada vez maior de atividades ilegais para além do tráfico nas comunidades.

            A ausência de policiamento ostensivo e de ações armadas contundentes por parte do Estado criou um ambiente propício para que as facções obtivessem ganhos de escala em suas atividades econômicas e em seus mecanismos de defesa contra o próprio Estado. À medida que cresciam em seu controle territorial, as facções reduziam custos operacionais e ampliavam seus lucros, criando barreiras à entrada que tornaram quase impossível o surgimento de rivais. Passaram a operar como grandes organizações monopolistas, controlando não apenas o mercado de drogas, mas também serviços como transporte, gás e até segurança privada.

            Sem maiores preocupações em conter investidas policiais, as facções foram capazes de acumular armamentos, contingentes operacionais e estabelecer redes hierárquicas sólidas, similares a exércitos paralelos, operando em ambientes de enorme concentração populacional. O domínio territorial, portanto, permitiu a internalização, pelas facções, de funções típicas do Estado e transformou a coerção em ativo econômico.

            Após anos convivendo em um ambiente propício à geração de ganhos de escala e ao estabelecimento de monopólios, as organizações criminosas tornaram-se poderosas demais para serem desmanteladas pelo Estado. O tamanho desse poder pode ser medido pela população que se encontra sob o jugo das facções. De acordo com o Mapa dos Grupos Armados do Rio de Janeiro, cerca de 1,6 milhão de pessoas vivem sob domínio de grupos narcotraficantes e 2,2 milhões sob controle das milícias na capital fluminense. Na Região Metropolitana, esse número sobe para cerca de 5 milhões de pessoas, o que representa aproximadamente um terço da população do estado.

            Grande parte dessa população vive em regiões definidas pela literatura especializada como black spots, isto é, zonas onde a autoridade pública é inexistente e o controle é exercido por um poder armado não estatal, resultando em uma soberania fragmentada e na coexistência de múltiplos “governos” dentro do mesmo território nacional. O Rio de Janeiro é um caso praticamente único no mundo. Ainda que seja difícil obter uma métrica precisa e satisfatoriamente comparável, a esmagadora maioria dos black spots se encontra em áreas sob estado de guerra civil. E embora existam contextos em que a proporção da população habitando nessas áreas seja similar ou mesmo maior que a verificada no Rio, a combinação de alto nível de urbanização e altíssima densidade populacional faz do estado um caso singular em termos de complexidade e impacto político-estrutural.

            A tragédia da segurança pública no Rio de Janeiro reflete uma questão muito mais profunda do que o senso comum supõe, configurando-se como um problema de incentivos econômicos. Enquanto o retorno do crime continuar maior que o custo da punição, as facções seguirão crescendo — e o Estado seguirá perdendo território. Se pretendemos reduzir a força das facções, precisamos diminuir os incentivos econômicos e reconstruir instituições que ofereçam alternativas legítimas às populações afetadas — só assim a lógica do lucro e da coerção que alimenta o crime organizado deixará de ser tão eficaz. E as políticas públicas devem refletir essa lógica. Afinal, como nos alerta Walter Williams, boas intenções não bastam — quando mal calibradas, podem até fortalecer o que pretendiam combater.

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Leonardo Luz
Doutor em Economia.

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