Analisando as três funções monetárias essenciais, investigamos se a criptomoeda é um ativo revolucionário ou uma mera convenção social volátil
O tema é polêmico para alguns e, sem dúvida, complexo para muitos outros leitores. Hoje vamos falar sobre o Bitcoin. Mas, antes de avançarmos, é importante esclarecer: não trataremos aqui da parte tecnológica do Bitcoin ou da rede blockchain. A base desta discussão será a teoria monetária — e convém abrir um parêntese fundamental: teoria monetária não se confunde com a chamada Teoria Monetária Moderna (TMM), corrente recente e controversa da economia. O objetivo é analisar o Bitcoin sob a ótica do dinheiro: sua função e seu papel no sistema financeiro contemporâneo.
A teoria monetária clássica define que uma moeda deve cumprir três funções essenciais: meio de troca, unidade de conta e reserva de valor. Como meio de troca, facilita transações e substitui o escambo. Como unidade de conta, estabelece um padrão comum para medir preços. E como reserva de valor, garante a preservação da riqueza ao longo do tempo. Esses três pilares são fundamentais para avaliar qualquer ativo que se apresente como moeda — inclusive o Bitcoin.
Na história brasileira, desde a chegada dos portugueses, a economia atravessou ciclos marcados pelo pau-brasil, pela cana-de-açúcar e, mais tarde, pelo ouro. Todos tinham valor econômico, mas nem todos poderiam ser usados como moeda. Afinal, carregar uma tora de pau-brasil era impraticável, enquanto uma moeda de ouro cabia no bolso. Por ser durável, portátil e escasso, o ouro se consolidou, no período do mercantilismo, como o principal padrão monetário e a medida de riqueza das nações.
Essa combinação de utilidade prática e oferta limitada fez do ouro mais do que uma mercadoria valiosa: transformou-o em base de sistemas monetários que perduraram por séculos. É justamente nesse ponto que nasce a comparação recorrente entre o ouro e o Bitcoin. Assim como o metal precioso, o Bitcoin é marcado pela escassez: existe um limite fixo de 21 milhões de unidades, que nunca poderá ser ultrapassado. Ao contrário do papel-moeda, sujeito à emissão desenfreada por governos e bancos centrais, o Bitcoin segue regras pré-programadas e imutáveis. Essa característica lhe rendeu o apelido de “ouro digital”, reforçando a ideia de que poderia desempenhar, em um mundo cada vez mais tecnológico, papel semelhante ao do ouro como reserva de valor.
Mas há diferenças importantes. Quando alguém compra um hectare de terra, por exemplo, sabe que ela pode gerar safra após safra: um hectare de soja produz dezenas de sacas todos os anos, que se transformam em alimentos, óleos e insumos essenciais. O mesmo vale para o ouro: além da função de reserva de valor, ele é amplamente utilizado em eletrônicos, medicina e joalheria. Ou seja, há um lastro de utilidade concreta que sustenta o valor desses ativos.
O Bitcoin, por outro lado, não produz nada de tangível. Não gera colheitas, não se transforma em insumos industriais, nem tem aplicação física direta. Seu valor depende quase exclusivamente da confiança coletiva de que será aceito no futuro em troca de bens ou serviços. Em outras palavras, é um ativo de convenção social, cujo “fazer” está limitado a registrar e transferir propriedade digital de forma descentralizada e segura. Seu poder de mercado repousa, portanto, na promessa — e não em uma utilidade material.
É justamente por isso que o Bitcoin divide opiniões. Para os defensores, a escassez programada e a independência em relação ao Estado fazem dele um ativo revolucionário, capaz de proteger contra inflação e desvalorização das moedas nacionais. Para os críticos, porém, ele não passa de uma bolha especulativa, movida por expectativas e pela volatilidade típica dos mercados financeiros digitais.
A verdade é que, como toda moeda ou quase-moeda na história, o Bitcoin só terá valor enquanto as pessoas acreditarem nele e aceitarem usá-lo. Talvez nunca substitua integralmente o dinheiro tradicional, mas já cumpre um papel essencial: provocar governos, economistas e cidadãos a repensarem o que é, afinal, o dinheiro.