O Marco Legal do Saneamento representa uma inflexão importante na história das políticas públicas brasileiras
Sancionado em julho de 2020, o Marco Legal do Saneamento Básico foi uma tentativa ambiciosa do Estado brasileiro de reformular o setor de saneamento básico em prol de solucionar um dos maiores problemas estruturais enfrentados pela população brasileira que é o acesso à água potável e a coleta e tratamento de esgoto. Trata-se de um dos maiores gargalos enfrentados pelo país em termos de oferta de serviços básicos. De acordo com dados de organizações como o UNICEF, o IBGE, Banco Mundial e o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), o Brasil se encontrava com cobertura abaixo das médias mundiais no acesso à água potável e coleta de esgoto onde, respectivamente, atingíamos cerca de 83,4% e 53,2% de cobertura, ante 90% e 60% em termos médios globais. A porcentagem da população atendida por tratamento de esgoto, por sua vez, atingia 49,1%, ligeiramente acima dos 45% registrados na média mundial. Quando comparados os números com aqueles verificados em outros países emergentes, o cenário era igualmente ruim. Os acessos à água potável, coleta de esgoto e tratamento deste se mostravam superiores em países como Chile, México, África do Sul e Argentina (este, com cobertura de tratamento inferior à brasileira, atingindo apenas 35%). A magnitude do déficit do saneamento brasileiro implicava o impedimento do acesso de mais de 35 milhões de brasileiros à água potável e cerca de 100 milhões de pessoas não dispunham de coleta de esgoto.
Em termos gerais, o setor de saneamento básico brasileiro se caracterizava em regimes de concessão direta, onde empresas – em sua maioria estaduais – atuavam como monopolistas sob contratos precários e desprovidos de metas de cobertura e de investimento. Sob ausências de um órgão regulador nacional e diretrizes legais claras, além da natureza fundamentalmente anticoncorrencial do sistema, atrair investimentos privados era muito difícil e o aporte de capital das prestadoras de serviços públicos eram insuficientes e ineficientes. De acordo com informações do Instituto Trata Brasil e da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos, o investimento médio anual, entre 2014 e 2018, atingiu R$11 bilhões, muito abaixo dos R$25 bilhões necessários para que a universalização fosse alcançada até 2033. Uma verdadeira tragédia, escancarando o atraso e incapacidade do modelo em voga.
O marco do saneamento buscou solucionar os principais gargalos do sistema, com mudanças profundas nas formas de gestão, financiamento e regulação dos serviços, privilegiando a competição, a transparência e o desempenho como pilares centrais da política pública. As principais alterações propostas pelo novo modelo incluíram o estabelecimento de metas de universalização (coberturas, respectivamente, de 99% no acesso à água potável e 90% à coleta e tratamento de esgoto), a extinção dos contratos entre municípios e companhias estaduais sem competição, a abertura à livre concorrência do capital privado, a criação de blocos regionais de municípios (para evitar que localidades com baixa de capacidade de absorção de investimentos não consigam atrair prestadoras privadas de serviços) e criação de um regulador nacional, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), que passou a estabelecer as normas de funcionamento do sistema, bem como garantir o cumprimento das regras definidas em contrato.
Os resultados positivos já podem ser sentidos às vésperas do marco completar seus cinco primeiros anos. Os dados mais recentes do SNIS (consolidados até 2023) apontam que o acesso à água potável cresceu cerca de quatro pontos percentuais, atingindo quase 87,5% da população, o que significa que mais de 7 milhões de brasileiros agora tem acesso ao consumo de água com parâmetros sanitários básicos. Os resultados alcançados na coleta e tratamento de esgoto foram ainda melhores, atingindo cerca de 60%, na primeira modalidade, e 55% na segunda, um crescimento de aproximadamente 6 pontos percentuais em ambos os casos, beneficiando mais de 13 milhões de brasileiros. O investimento médio anual no setor entre 2020 e 2024 ainda não atingiu os R$25 bilhões necessários à universalização, mas saltou para R$17,2 bilhões, um aumento de mais de 50%, sendo que a participação do capital privado já supera os 25% dos investimentos totais.
A implementação do marco tem sido gradual e há ainda muita discrepância entre os estados em relação ao grau de adesão ao novo sistema, onde alguns já aderiram integralmente, ao passo que outros ainda se encontram em adesão parcial. À título de ilustração, nos quatro maiores estados do país houve expansão importante nas coberturas de água potável e de esgotamento. Em São Paulo, onde a SABESP, companhia estadual de saneamento, foi desestatizada no ano passado, a cobertura de água potável já aumentou em três pontos percentuais, atingindo 97% da população, com foco, sobretudo, em áreas rurais e periféricas. Minas Gerais atingiu 70% de cobertura de esgotamento sanitário, um aumento de mais de 15% desde de o início da adesão. No Rio de Janeiro, onde o leilão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE), em 2021, foi emblemático por ser a primeira grande cessão do serviço à iniciativa privada, a cobertura de água saltou de 85% para 89%, ao passo que a rede de esgotamento se viu ampliada de 55% para 62%. Na Bahia os números também têm sido promissores, com o aumento das coberturas de água e de esgotamento saltando, respectivamente, de 70% para 75% e de 40% para 50%.
Apesar dos avanços, a universalização do saneamento ainda tem um longo caminho a percorrer no país. A curva de investimentos precisa se manter em crescimento contínuo para que possa atingir os R$700 bilhões necessários para que se alcance as metas para 2033. Os principais entraves à plena implementação do marco encontram-se nos próprios agentes políticos e do estado. A forte resistência política de alguns governos estaduais reside, sobretudo, no interesse de governadores em manter o controle das empresas públicas de saneamento, locus não apenas de troca de cargos e de pressão das corporações do serviço público, como também de políticas parafiscais que são caras a mandatários. Tais entraves têm sido potencializados por partidos de esquerda e pelo próprio governo federal, que tentou, junto ao Congresso, reverter, sem sucesso, o marco logo em seu primeiro ano de mandato. A cosmovisão tacanha e retrógrada da esquerda em geral acerca da prestação de serviços públicos, os interesses paroquiais de lideranças políticas e os sempre fortes e poderosos interesses cartoriais da burocracia pública, que não quer perder as vantagens de pertencer a uma empresa estatal, têm produzido uma enxurrada de questionamentos judiciais em relação a medidas de implementação dos parâmetros do marco, alegando inconstitucionalidades e buscando limitar a amplitude dos contratos. Superar os empecilhos criados pelo próprio Estado é, portanto, o grande desafio que temos pela frente.
O Marco Legal do Saneamento representa uma inflexão importante na história das políticas públicas brasileiras, se afigurando como o maior passo já dado pelo Estado na criação de condições que rompam com décadas de estagnação e ineficiência no setor. Os resultados, ainda que iniciais, apontam para um movimento consistente de ampliação do acesso e aumento dos investimentos. Será necessária, contudo, uma atuação coordenada entre União, estados, municípios, empresas e sociedade civil para que os objetivos traçados sejam efetivamente alcançados. O sucesso do marco dependerá da superação de resistências políticas, da profissionalização da regulação e da continuidade dos investimentos.