Quando os perdedores da globalização viram eleitores: o protecionismo que redefine a economia mundial
Em 1989, no aritgo The End of the History, o cientista político Francis Fukuyama cunhou o termo “fim da história” e, no livro intitulado The End of the History and the last man, de 1992, expandiu e detalhou o conceito. Para Fukuyama, o fim da Guerra Fria e a queda do socialismo real significaram o encerramento dos grandes embates ideológicos do século XX, com a vitória da democracia liberal e do livre mercado, o que resultaria na prevalência do sistema político-econômico capitaneado pelos EUA em um cenário onde não haveria questionamentos fundamentais aos rumos do desenvolvimento político e econômico mundiais. Nos anos que se seguiram ao vaticínio de Fukuyama, a integração econômica global se consolidou e novos atores foram incorporados a nova ordem, como a China, o Vietnã e a Rússia. A integração das cadeias de valor globo afora promoveu uma queda nos preços dos bens, beneficiando os mercados consumidores e corroborando a tese do economista britânico novecentista, David Ricardo, de que o comércio entre os países geraria grandes ganhos a todos os seus partícipes ao permitir que as vantagens de custos relativos de cada país produtor aumentem a base de consumo de todos os participantes do mercado.
Passados mais de trinta anos desde a publicação do livro de Fukuyama, o mundo vê ruir a ordem que se estabeleceu no pós-Guerra Fria e o modelo de fluxo de comércio e capitais sofreu seu mais importante ataque desde então no último dia 2 de abril, quando Donald Trump anunciou o pacote de tarifas à importações mais agressivo imposto pelos EUA desde 1930. De imediato, o chamado Liberation Day pareceu um retorno de cem anos da política comercial americana, na contramão do modelo que governou o país desde o pós-Guerra e permitiu que se tornasse a potência hegemônica global. Muitos tem associado este retrocesso a uma cosmovisão de mundo mercantilista já apresentada por Trump há décadas.
Quando, entretanto, olhamos mais atentamente as transformações da sociedade americana nestas três décadas, vemos que Trump é menos um ideólogo desta quebra de paradigma e mais um mestre de picadeiro da debaclé do grande consenso liberal estabelecido desde a vitória americana sobre a URSS e que pode ser entendido à luz do arcabouço teórico conhecido por Trilema de Rodrik. Proposto em 2000 por Dany Rodrik no artigo intitulado “How Far Will International Economic Integration Go?”, o Trilema de Rodrik busca compreender a relação entre três fundamentos da organização político-econômica dos países ante o cenário de hiperglobalização, a saber, a globalização econômica, a soberania nacional e a democracia representativa. De acordo com Rodrik, o gerenciamento de tais objetivos é demasiado complexo, de modo que priorizar o bom funcionamento de dois deles implicaria a flexibilização do terceiro. Por exemplo, uma plena abertura econômica levaria a um aumento da desigualdade interna promovido pela incapacidade de alguns segmentos da população de se apropriar dos benefícios da diversificação da produção em termos globais, de modo que os perdedores do processo tenderiam a buscar medidas protetivas para as suas atividades e, tendo sua voz ouvida nos processos eleitorais próprios de uma democracia liberal, levariam a algum nível de fechamento de suas economias ou a perda de sua soberania. Inevitavelmente, segundo Rodrik, cada país seria levado a abrir mão de uma das três modalidades. A China, por exemplo, participa ativamente do comércio global e garante a sua plena soberania, contudo é uma autocracia de partido único. Por sua vez, União Europeia, Coréia do Sul, Japão e Canadá são democracias com altíssimos níveis de abertura econômica, mas não podem ser considerados países soberanos, o que pode ser facilmente constatado por terem terceirizado sua segurança nacional – o componente mais existencial do que podemos entender por soberania – aos cuidados dos EUA. Os americanos, por outro lado, não parecem dispostos a abrir mão de sua soberania e não há indícios de que a democracia liberal esteja ameaçada no país, restando, de acordo com o modelo de Rodrik, a integração econômica para ser colocada em xeque.
Por trás da opção americana pelo maior isolamento econômico está o profundo processo de desindustrialização, que levou ao surgimento de um cunha entre os perdedores e vencedores da globalização. De um lado, os trabalhadores de maior nível de produtividade e integrados às cadeias de serviços de alto valor agregado e de tecnologia foram os grandes beneficiários da hiperglobalização. Do outro, os segmentos da classe média que ocupavam funções industriais mais tradicionais viram seus empregos serem destruídos e suas condições de vida se degradarem em relação às de seus pais. Um filho de um trabalhador industrial médio americano das décadas de 1970 e 1980 não mais está empregado em uma empresa que lhe garanta alguma estabilidade profissional, que lhe forneça um bom seguro de saúde e sólidos planos de previdência ou o acesso ao crédito imobiliário que assegurou a seus pais não apenas a compra de imóveis, mas também ao financiamento de seu consumo via sistema de hipotecas. O trabalhador blue collar de quarenta anos atrás agora possui ocupações de baixo rendimento, instáveis e mais do que qualquer outra coisa, não vê mais as condições de temperatura e pressão adequadas para que consiga ascender socialmente, diferentemente de seus pais e avós. Mais do que observar um aumento dramático da desigualdade social e da pobreza nos EUA, o antigo trabalhador industrial americano enfrenta a quebra da mobilidade social, como muito bem argumenta o historiador econômico escocês Niall Ferguson, que atribui grande parte da explicação do fenômeno ao aumento da desigualdade educacional, sobretudo em termos de qualidade desta educação.
Este trabalhador, notadamente perdedor no processo de globalização e residente das pequenas e médias cidades dos EUA, vê no protecionismo comercial e na reindustrialização dos EUA um meio de retornar ao status social de seus pais. Não a toa Trump lançou mão da pauta tarifária como plataforma eleitoral nos três ciclos políticos que participou, sobretudo no último, que lhe rendeu não apenas a vitória no colégio eleitoral e na votação popular, mas ainda garantiu aos republicanos a maioria dos assentos no Senado e na House of Representatives. Trump não está implementando uma política por ele gestada, mas respondendo às demandas de parte significativa do eleitorado que lhe conferiu tamanha vitória nas urnas em 2024 e, inclusive, dando continuidade, em certa medida, ao movimento que ele mesmo iniciara em seu primeiro mandato e que seu antecessor, Joe Biden, também implementou.
O governo Biden adotou uma série de medidas para incentivar a industrialização e proteger o comércio e a liderança americana na cadeia de tecnologia, com destaque para o fortalecimento da cadeia de suprimentos doméstica, especialmente em setores estratégicos como semicondutores, geração de energia e tecnologia avançada. Uma série de leis e ordens executivas foram implementadas e expandidas durante o mandato democrata, como o Chip’s Act, o Inflation Reduction Act e novas autorizações para prospecção de petróleo (incluindo as concessões de exploração no Alaska). Tais medidas, além de subsidiar e financiar diretamente a internalização da produção de vários componentes de cadeias de produção estratégicas, impôs sanções à concorrência externa, sobretudo da China, se afigurando em um dos mais robustos programas de incentivo à produção da história americana.
Ao observarmos os movimentos da dinâmica social dos EUA nos últimos anos e as medidas adotadas por seus governos, sejam republicanos ou democratas, nos parece que os rumos que os EUA tomaram em relação ao seu papel na ordem econômica internacional não se resumem a um revisionismo trumpista, mas se afiguram um movimento estrutural que responde às demandas dos perdedores do processo de hiperglobalização e que, em uma democracia representativa, se fazem ouvidas por todos os participantes do sistema partidário, em diferentes formas e intensidades. A eventual reorganização da ordem global tal como observamos nos últimos trinta anos não pode, assim, ser creditada ao trumpismo, mas a sociedade americana.