Chegamos a metade da década de 2020 com a frustração das expectativas de muitos analistas de que a China engataria um crescimento acelerado, tanto de produto quanto de produtividade, e ameaçaria o posto ocupado pelos EUA de maior economia do planeta. Depois de um processo robusto de crescimento econômico de mais de 40 anos, a economia chinesa chega a 2025 sob grande desconfiança e longe da performance das últimas décadas.
O PIB de 2024 deve crescer menos de 5%, apenas em linha com a meta estipulada pelo governo, com a confiança do consumidor no menor nível em décadas, o deflator do PIB comprimido para valores apenas maiores do que os registrados durante a crise de 2008/2009 e com juros futuros em franca queda, o que denota uma expectativa de deflação para os próximos anos. Um cenário nada construtivo para um país que era esperado assumir o topo do ranking das economias globais.
A deflação identificada na economia chinesa é o último ato do roteiro seguido pela maioria dos países asiáticos no pós-guerra, que seguiram um modelo de desenvolvimento bem específico e que se inicia com uma reforma agrária que aumenta a produtividade agrícola e reduz a população rural, seguida da absorção da mão-de-obra pela indústria voltada para o mercado externo. Com a crescente urbanização, a demanda por obras de infraestrutura é fortemente incrementada, turbinando as taxas de investimento que, associadas ao fluxo positivo de capital oriundo do aumento das exportações, catapultam a renda per capita.
No caso chinês, o conjunto de grandes reformas econômicas que introduziram o modelo de desenvolvimento asiático remonta à liderança de Deng Xiaoping. Sob o nome de Reforma e Abertura e iniciado em 1978, o plano previa a modernização da economia e seu ingresso na cadeia internacional de valor. Os primeiros passos foram a inserção diplomática da China e um profundo processo de modernização agrícola e agrária. Xiaoping foi o primeiro líder chinês a visitar os EUA e costurou o reconhecimento internacional da “China Única”, que assumia a República Popular da China como estado soberano do povo chinês e levou ao fim do reconhecimento de Taiwan como estado independente e representativo, o que permitiu a construção de acordos comerciais com a grande maioria dos países. As reformas no setor agropecuário extinguiram a coletivização da produção e permitiram o comércio de seu excedente, além do fornecimento de subsídios para a mecanização das culturas.
Por resultado, o valor agregado da produção agrícola cresceu mais de 100% em 20 anos e o aumento da produtividade levou ao maior êxodo rural já registrado na história quando, na primeira década dos anos 2000, mais de 300 milhões de chineses deixaram o campo e ocuparam os centros urbanos. Para se ter uma ideia, a taxa de população urbana chinesa saltou de cerca de 15% no início dos anos 1980 para mais de 66% nos dias atuais.
A crescente urbanização permitiu um forte processo de industrialização baseado em baixos custos – especialmente de mão-de-obra – que tornou os produtos chineses altamente competitivos, absorvendo capital estrangeiro e alimentando novos investimentos. A urbanização e a oferta de capital impulsionaram a formação de infraestrutura, incrementando o setor de construção civil ano após ano, até este atingir um terço do produto nacional. Impulsionado pelos robustos subsídios, sempre renovados pelas novas lideranças do Partido Comunista Chinês, o setor operou como fiador do crescimento econômico e acomodou a crescente poupança privada dos trabalhadores, que alocaram suas economias individuais em novos empreendimentos cuja valorização era assegurada pelo fluxo de novos moradores nas cidades, oriundos do campo. Os voluptuosos investimentos eram assegurados, principalmente, pela venda de terrenos pelos governos locais que, por sua vez, se tornaram canais de distribuição de crédito para indivíduos e empresas.
Ao fim do governo de Hu Jintao, nos primeiros anos da década de 2010, o governo central chinês, que havia mantido a política de expansão de infraestrutura, começava a mostrar preocupação com os níveis de alavancagem das empresas de construção civil e dos governos provinciais, levando o PCC a realizar sua transição de liderança de 2012 sob a promessa de transformar a China de uma economia baseada em investimentos voltados ao mercado externo em uma economia de consumo. Entretanto, a ascensão de Xi Jinping significou uma aposta no modelo iniciado por Xiaoping, sendo mantidos os fortes subsídios e uma crescente alavancagem das linhas de crédito imobiliário do país.
A partir de 2021, no entanto, o modelo apresentou a mesma estagnação observada em outros países asiáticos. A estabilização das taxas de crescimento, a contração oriunda da política do Covid Zero e os retornos marginais decrescentes dos novos empreendimentos em infraestrutura (afinal, qual o ganho de produtividade de mais uma ponte ligando duas cidades quando já há várias em operação?) escancararam a crise no setor, com empresas altamente alavancadas, linhas de fomento estranguladas e preços dos imóveis em declínio. A insolvência da incorporadora Evergrande, gigante do setor, simboliza o atoleiro em que se encontra o segmento mais importante da economia chinesa.
A queda no preço dos imóveis, principal ativo na carteira de investimentos das pessoas físicas na China, vem operando um efeito-riqueza negativo, reduzindo fortemente o consumo das famílias, que atingiu o menor nível de toda a série histórica, apesar do robusto crescimento de sua renda per capita, que saiu de menos de mil dolares, no início dos anos 1980, para mais de 20 mil, em 2024. Por resultado, os níveis de poupança caminham para superar o pico registrado há quase vinte anos. O excesso de poupança, com a estagnação do setor imobiliário, vem pressionando o deflator chinês que, sem um incremento no consumo, tende a seguir a mesma trajetória verificada em países como o Japão.
O robusto crescimento da renda média levou a China a deixar de ser um low cost country, com aumento substancial do custo da mão-de-obra e consequente perda de competitividade internacional, em termos relativos. Isto posto, Pequim entendeu a necessidade de reconfiguração das bases industriais do país, a fim de conseguir, ao mesmo tempo, reduzir a dependência de investimentos em infraestrutura e acomodar o novo padrão salarial do trabalhador chinês. A fórmula adotada foi o investimento na indústria de precisão e de tecnologia de ponta.
Os resultados, entretanto, não tem sido – não o serão – suficientes para tirar o país da armadilha da deflação, como não o fora, por exemplo, no Japão. Um complicador adicional é o aumento do protecionismo econômico mundo afora, com as restrições e sanções impostas pelo ocidente, que tendem a reduzir o mercado consumidor dos produtos chineses mais intensivos em tecnologia e, consequentemente, exigindo uma transição mais acentuada do país de uma economia voltada para “fora” para um modelo centrado no consumo interno.
Transformar uma economia voltada para a absorção de poupança externa em uma economia de consumo não é, contudo, uma tarefa trivial para as grandes economias da Ásia, restando por alternativa a depreciação cambial. No caso chinês, alguns obstáculos devem dificultar o caminho. Em primeiro lugar, a ausência de uma rede de proteção social pública incentiva a poupança individual, especialmente se considerarmos que a expectativa de vida do chinês saltou de 60 para mais de 78 anos em meio século o que, na ausência de um sistema de previdência estatal, induz a manutenção das taxas de poupança privada a níveis substancialmente elevados, fenômeno agravado pela redução dos níveis de riqueza resultante da queda dos preços dos imóveis.
Outro complicador advém da demografia. A combinação do aumento do custo de vida e dos resultados da política do filho único, vigente de 1980 a 2015, deflagraram um processo de redução dramático das taxas de crescimento populacional e que levará a um declínio demográfico esperado de cerca de 40% da população nas próximas décadas. Com um mercado consumidor reduzido e uma população cada vez menos disposta a despoupar, aumentar os níveis de consumo será uma tarefa desafiadora para a China.
Passados quase 50 anos do início do processo mais exitoso de crescimento econômico experimentado por uma economia moderna, a China se encontra em uma encruzilhada. O país foi capaz de construir a maior base industrial do planeta, promover taxas de crescimento impressionantes e elevar a renda média da população. A dependência dos investimentos em infraestrutura, entretanto, colocou o país em um looping que precisa de um aumento nos níveis de consumo para ser quebrado e afastar o fantasma da deflação. O remédio passa pela desvalorização da moeda – caminho que pode não produzir resultados muito promissores, como vimos no caso japonês – ou por impulsionar o consumo. Para que o segundo caminho possa ser trilhado, é preciso que o PCC abandone alguns dos postulados mais sólidos de governos de cunho socialista e crie programas de proteção social suficientemente fortes para reduzir as taxas de poupança dos trabalhadores.
Pelo lado da oferta, o desafio chinês é manter-se internacionalmente competitivo mesmo com o aumento dos custos de produção e com barreiras cada vez maiores ao seu comércio internacional. Os caminhos para fugir da estagnação estão postos, resta saber se a China logrará o êxito que outros países asiáticos não foram capazes de atingir.