Leonardo Luz: ‘A lanterna dos afogados’

Leonardo Luz: ‘A lanterna dos afogados’

Já se fala abertamente sobre o risco de dominância fiscal, os primeiros passos para cairmos nesta armadilha estão sendo dados

O Congresso Nacional aprovou o pacote fiscal apresentado pelo governo. O projeto encaminhado pelo ministro Fernando Haddad, que já se mostrava mais do que insuficiente para estabilizar a trajetória da dívida soberana brasileira, foi ainda desidratado pelo Parlamento, reduzindo sua já insuficiente potência fiscal. O presente – de grego – natalino recebido pela população vem pressionando ainda mais os já frágeis fundamentos de nossa economia e escancara a janela de incertezas sobre o futuro.

O resultado não poderia ser diferente: a curva longa de juros continua se abrindo a cada dia, o dolar se acomodou acima de R$6 e os ativos brasileiros estão derretendo. O Boletim Focus, divulgado na última segunda-feira, 23, confirmou a erosão das expectativas destes fundamentos. O mercado está precificando, para o fim de 2025, uma Selic de 14,75 (um aumento de 75 bps em apenas uma semana), uma mediana de 4,85% para o IPCA e o dolar operando em 5,90. Como nada é tão ruim que não possa piorar, se o Banco Central dos EUA entender que é preciso esfriar mais a economia americana e adotar uma postura mais contracionista nos juros, as previsões do Boletim Focus mostrar-se-ão muito otimistas e a valorização do dolar deverá pressionar ainda mais o Real.

Diante de tamanha deterioração de nossos fundamentos, já se fala abertamente sobre o risco de dominância fiscal – a perda de capacidade da política monetária na estabilização da inflação devido à pressão das contas públicas. Os primeiros passos para cairmos nesta armadilha estão sendo dados. Na última semana, por quatro dias seguidos, registramoscircuit breakers (o encerramento das operações de venda de títulos públicos devido à ausência de demandantes) na venda de dívida soberana pelo Tesouro Nacional, mesmo com taxas de 8%, em termos reais, oferecidas em títulos de dívida longa – superando os piores momentos da crise do governo Dilma Rousseff.

Não importa o tamanho do prêmio de risco, ninguém quer financiar a nossa dívida. O anúncio do Tesouro de encerrar a venda de dívida pré-fixada e aumentar a quantidade ofertada de títulos lastreados na SELIC é outro caminho para atingirmos a tragédia da dominância fiscal, ainda mais quando, diferentemente do passado relativamente recente, já temos mais de 50% de nossa dívida rolando em juros. O mercado, que parece ter perdido a parca confiança que tinha no governo, acusou o golpe e nem mesmo a maior intervenção cambial da história promovida pelo Banco Central – mais de U$30 bi de reservas queimadas em 7 dias – está sendo suficiente para conter a escalada do dolar, que fechou o pregão do dia 23 em impressionantes R$6,19.

Em um cenário conturbado e nada construtivo em relação ao fiscal brasileiro, Lula divulgou um vídeo, no último dia 20, ao lado de ministros da área econômica e do futuro presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, em que reafirma seu compromisso com a estabilidade econômica e controle da inflação. O presidente enfatizou que Galípolo terá uma autonomia nunca antes vista por um banqueiro central brasileiro, em uma clara tentativa de acalmar os ânimos do mercado naquilo que parece ser o último resquício de confiança que o país pode gozar. As declarações, contudo, não devem ser muito produtivas. A autonomia do Banco Central é garantida por lei e pouco importa o que o presidente pense sobre ela, ainda mais se consideramos os ataques promovidos pelo chefe do Executivo desde o início de seu terceiro mandato à atuação de Roberto Campos Neto e à própria independência da autoridade monetária.

A atuação de Galípolo no Comitê de Política Monetária, desde a sua indicação à Diretoria de Política Monetária, endossa a irrelevância da sinalização presidencial. Tanto o futuro banqueiro central brasileiro quanto os demais indicados pelo atual governo ao Banco Central têm atuado em total divergência com a política fiscal adotada pelo executivo, bem como em relação a narrativa de Lula e do PT. Tanto os votos dos indicados pelo atual governo quanto suas declarações, sejam nas atas do COPOM ou em entrevistas à imprensa, indicam que as gestões Campos Neto e Galípolo terão o mesmo diagnóstico sobre o protagonismo do fiscal na inflação brasileira e adotarão o mesmo remédio. A última reunião do COPOM, já presidida por Galípolo, endossa a postura que se espera da autoridade monetária: além de decidir pelo aumento da SELIC para 14,25% (um aumento de 100 bps, no limite superior da expectativa do mercado) contratou mais duas altas na mesma magnitude para as próximas reuniões do comitê.

O endosso presidencial à atuação autônoma do Banco Central nada mais é, então, do que uma contenção de danos por parte do governo, que escancarou de vez seu descompromisso com a responsabilidade fiscal e total submissão das contas públicas ao calendário eleitoral. De olho em 2026, Lula está claramente disposto a comprometer os fundamentos macroeconômicos em nome de um crescimento acima do produto potencial, um vôo de galinha até as eleições gerais que será pago com inflação e, em um cenário cada vez mais provável, com o naufrágio de nossa economia na dominância fiscal. Lula e o mercado sabem que, em meio a tempestade que promete atingir a metade final de seu mandato até as eleições de 2026, o Banco Central é o farol que pode guiar a economia brasileira a um porto seguro. No entanto, se o navio naufragar na dominância fiscal, não haverá uma lanterna para os afogados.

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Leonardo Luz
Leonardo Luz
Doutor em Economia.

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