Os argentinos foram às urnas para escolher 127 cadeiras na Câmara dos Deputados (metade dos 257 assentos) e 24 das 72 do Senado. O resultado surpreendeu, dando ao partido La Libertad Avanza (LLA), liderado por Javier Milei, aproximadamente 40,8% dos votos nacionais. O LLA conquistou 64 novos deputados, elevando sua bancada para cerca de 92 assentos no total, e ampliou sua representação no Senado, passando de 6 para 19 senadores. Essa composição confere a Milei mais de um terço das cadeiras na Câmara e número semelhante de senadores, o que permite ao Executivo impedir a derrubada de vetos presidenciais e bloquear decisões parlamentares sem depender da oposição de esquerda.
O resultado dá ao governo de Milei espaço político para acelerar as reformas econômicas radicais que vêm sendo implementadas, compostas por cortes expressivos de gastos, redução de ministérios, revisão de subsídios e construção de um arcabouço institucional que tem como objetivo central restabelecer a disciplina fiscal e a credibilidade monetária. Trata-se de um plano de choque: eliminar déficits, reduzir o tamanho do Estado e enviar sinais claros ao mercado para atrair capital estrangeiro e interromper a dinâmica inflacionária.
Apesar dos inegáveis êxitos alcançados nesses dois anos de mandato, o governo tem enfrentado, nos últimos meses, uma oposição mais ferrenha no Congresso, e diversos decretos do Executivo foram derrubados, além da aprovação de medidas que contrariam o plano governamental de ajuste macroeconômico. A própria natureza das reformas, pautadas pela austeridade fiscal, é demasiadamente impopular e socialmente custosa — especialmente para os aposentados —, o que tende a corroer o apoio ao governo ao longo de sua implementação. A continuidade da política de choque enfrenta, portanto, um dilema de curto prazo: manter a força política — exigindo grande tolerância social — em um contexto de elevado custo de ajuste. A governabilidade, nesse sentido, é tanto condicionante quanto consequência do sucesso das reformas.
A vitória ocorreu exatamente no momento de maior erosão do apoio popular ao presidente. Com popularidade em baixa — seja pelos custos sociais das reformas e pela recente pressão cambial sobre o peso, seja pelo escândalo de corrupção que atingiu sua irmã —, esperava-se que o desempenho da LLA fosse insuficiente para garantir, ao menos, um terço dos assentos nas duas Casas. A derrota sofrida pelo partido nas eleições locais de Buenos Aires, há poucos meses, reforçou o pessimismo, refletido na queda dos preços dos ativos de risco argentinos. A vitória de Milei, em um cenário tão turbulento, pode revelar, assim, um esgarçamento da confiança — e da paciência — do eleitor argentino diante dos modelos econômicos populistas que levaram o país ao caos econômico e social. Após décadas, a população parece ter aprendido com a própria história — e o que não faltou aos hermanos foi material para aprender.
A trajetória macroeconômica da Argentina desde a década de 1990 é marcada por ciclos agudos de inflação, endividamento e crises cambiais. Durante a Lei de Convertibilidade (1991–2001), implementada pelo ministro Roberto Cavallo, a inflação anual, que havia atingido 2.300% em 1990, despencou para menos de 5% ao ano entre 1993 e 2000, consolidando uma aparente estabilidade. No entanto, o modelo de paridade cambial gerou déficits fiscais e externos crescentes, com a dívida pública saltando de 29% do PIB em 1993 para cerca de 54% em 2001, enquanto o peso se mantinha artificialmente valorizado frente ao dólar. O colapso de 2001, com o calote da dívida de US$ 100 bilhões, provocou uma desvalorização monetária superior a 200% em poucos meses e o recrudescimento da carestia, que superou 40% em 2002.
O colapso econômico levou à ascensão ao poder de Néstor Kirchner, marcando o início de um ciclo de políticas heterodoxas que incluíram o uso das reservas do Banco Central para financiar o Tesouro, o congelamento de tarifas públicas, subsídios massivos, controle cambial e manipulação de estatísticas inflacionárias. Essas medidas, associadas ao superciclo dos preços das commodities, sustentado pela demanda chinesa, embora tenham promovido crescimento no curto prazo, desorganizaram a economia e corroeram a credibilidade da moeda. Também sustentaram a manutenção do grupo kirchnerista no poder, mesmo após a morte de Néstor, sob a liderança de sua esposa, Cristina, que terminou o mandato, em 2015, com inflação real superior a 25% ao ano e dívida bruta de 56% do PIB.
Com a derrota do kirchnerismo e a ascensão de Mauricio Macri à Casa Rosada, houve uma tentativa de restabelecer a confiança dos mercados. O acordo firmado com o FMI, em 2018, que previa um empréstimo de US$ 57 bilhões para estabilizar as reservas cambiais do país — o maior da história do Fundo —, parecia cimentar o caminho do ajuste. Porém, as reformas fiscais e cambiais necessárias para a recuperação dos fundamentos macroeconômicos foram excessivamente graduais e incompletas. Como resultado, houve nova corrida cambial, e o peso se desvalorizou mais de 40% apenas em 2018. Ao fim do mandato, Macri entregou uma economia fragilizada e atolada nos mesmos vícios que prometera vencer. O gradualismo tímido e temeroso fracassou.
As eleições gerais de 2019 deram a pá de cal na esperança de ajuste macroeconômico, com a vitória de Alberto Fernández, que enterrou de vez as tentativas de estabilização, deteriorando ainda mais os fundamentos da economia. A eclosão da pandemia de COVID-19, combinada ao regime de controle de preços e ao déficit primário superior a 6% do PIB em 2020, reativou a emissão monetária em larga escala, empurrando a inflação para 211% em 2023 — a mais alta desde 1990. No início de 2024, antes das reformas de Milei, a dívida pública total ultrapassava 85% do PIB, e o câmbio paralelo chegava a 1.200 pesos por dólar, simbolizando o colapso de confiança na moeda nacional e a falência de décadas de populismo fiscal e cambial.
Diante do colapso econômico legado pelo populismo, o eleitor argentino escolheu Milei para liderá-lo em 2023. Com um discurso duro, o libertário pôs de lado o gradualismo e prometeu um tratamento de choque. A ampla vantagem conquistada nas urnas indicava que o cansaço com o modelo peronista era real, mas muito se questionava sobre a capacidade de implementação das reformas prometidas e, sobretudo, se manter-se-ia seu apoio popular ao longo do mandato. A expressiva vitória eleitoral obtida por Milei no último fim de semana parece, contudo, indicar que o argentino está disposto a pagar o preço do ajuste e não mais ceder à tentação do populismo (por ora).
Os desafios, entretanto, são grandes, especialmente na dimensão cambial. A partir de abril de 2025, o governo argentino adotou reformas significativas no mercado de câmbio, eliminando diversas restrições que faziam parte do chamado cepo cambiario, como limites mensais para a compra de dólares por indivíduos e a exigência de autorização prévia para acessar o mercado oficial. Ao mesmo tempo, o regime cambial passou a operar dentro de uma banda flutuante, o que implica maior flexibilidade do câmbio oficial, e uma tentativa de unificação das taxas, eliminando a convivência de múltiplos câmbios oficiais. No entanto, o país precisa consolidar reservas suficientes para sustentar as flutuações cambiais, reduzir a enorme diferença entre o câmbio oficial e o paralelo (que ainda gera desconfiança) e quebrar o ciclo de indexação de contratos e passivos em moeda estrangeira. Se não o fizer, o risco é que uma queda de confiança desencadeie nova fuga de capitais, desvalorização explosiva do peso e reescalada inflacionária.
Uma grande vitória foi alcançada nas últimas semanas, quando os Estados Unidos aprovaram uma linha de swap de US$ 20 bilhões com o Banco Central argentino, além de planejarem mais US$ 20 bilhões em financiamento por meio de bancos privados e fundos soberanos. O pacote pode estabilizar o peso, reforçar as reservas cambiais e apoiar o governo de Javier Milei nas reformas econômicas; porém, sem credibilidade política e aderência às metas fiscais, o efeito poderá ser temporário e criar mais riscos de dependência externa.
A Argentina de Milei está em um ponto de bifurcação: as reformas de choque já produziram indicadores fiscais e inflacionários mais saudáveis, e o restabelecimento de linhas de financiamento e reservas cambiais tende a dar suporte à estabilização monetária. Mas o problema essencial não é apenas técnico — é político e institucional. A história argentina mostra que alterações superficiais (cortes temporários e ajustes de estoques) são frágeis se não vierem acompanhadas de reformas estruturais e de um pacto social que ancore as expectativas.
No dramático tango que conforma a história recente da Argentina, a pauta apresenta duas notas: uma técnica e outra política. A primeira é clara e consiste em consolidar superávits primários estruturais, transformar reservas em amortecedores líquidos, reduzir a indexação e definir regimes cambial e monetário críveis. A segunda, de natureza política, é menos harmônica, exigindo a construção de apoio para medidas impopulares no curto prazo, o estabelecimento de redes de proteção social transitórias que amenizem os custos de estabilização e a negociação da arquitetura da ancoragem monetária. Sem esse duplo trabalho — técnico e político — os riscos de reversão permanecem elevados. O triunfo de Milei criou as condições políticas para a consolidação das reformas, e a Argentina parece mais próxima do que nunca de virar a página da partitura e trazer tons mais alegres ao seu tango.