Leonardo Luz: “O eterno retorno do populismo fiscal”

Leonardo Luz: “O eterno retorno do populismo fiscal”

Depois das urnas, entretanto, a realidade fiscal se impõe e a conta chega com juros — literalmente

Há um ano das eleições de 2026, o Brasil se defronta, mais uma vez, com uma espécie de rito macabro que se repete a cada quatro anos: o governo incumbente, diante da proximidade do pleito, abre os cofres, expande gastos, concede benefícios e adota medidas de alívio imediato ao bolso do eleitor, a fim de angariar vantagens eleitorais de curto prazo. Depois das urnas, entretanto, a realidade fiscal se impõe e a conta chega com juros — literalmente.

Esse fenômeno não é uma jabuticaba brasileira — embora tenha encontrado aqui um terreno fértil para se reproduzir. A teoria econômica o chama de ciclo político-eleitoral e foi incorporado à literatura a partir do trabalho de William Nordhaus, de 1975, que introduziu a ideia de ciclos político-econômicos, segundo a qual governos, em busca de maximizar votos, tendem a manipular variáveis macroeconômicas de curto prazo — sobretudo o gasto público e a política monetária — para gerar sensação de bem-estar antes das eleições, ainda que ao custo de desequilíbrios posteriores. Desde então, uma vasta literatura testou a hipótese em diferentes contextos, e os resultados apontam que, embora o fenômeno seja identificado em diversas democracias, manifesta-se de forma mais intensa em economias emergentes.

Estudos mais recentes, como os de Brender e Drazen (2008), Aidt, Veiga e Veiga (2011) e Bittencourt e Terra (2020), mostram que países com instituições fiscais frágeis, alta volatilidade macroeconômica, baixa credibilidade das regras orçamentárias e profunda desigualdade social tendem a apresentar ciclos eleitorais mais agudos, com aumentos significativos de gastos correntes e subsídios em anos de eleição. Utilizam-se, nesses casos, mais intensamente, políticas redistributivas como arma eleitoral, e não apenas estímulos macroeconômicos clássicos.

No contexto brasileiro, Klein e Sakurai (2015) identificaram que, em anos eleitorais, as despesas correntes sofrem expansão média de 6% a 8% acima da tendência histórica, sobretudo em itens como transferências sociais e folha de pagamento do setor público. Meneguin e Bugarin (2019), analisando os ciclos em nível municipal, concluíram que a manipulação fiscal chega a elevar em até 12% os gastos per capita no ano do pleito. Esses resultados demonstram que o modelo de Nordhaus, longe de ser apenas uma abstração teórica, descreve com precisão o padrão recorrente da política econômica no Brasil, em diferentes níveis de governo. O efeito é um ciclo vicioso que se repete com a proximidade das eleições: expectativas de desequilíbrio fiscal elevam os prêmios de risco, aumentam os juros e reduzem o espaço de investimento público no período pós-eleitoral.

Nos últimos 35 anos, praticamente todos os presidentes utilizaram mecanismos de expansão fiscal em períodos eleitorais. Fernando Henrique Cardoso manteve a política de elevação de gastos sociais e reajustes do salário mínimo acima da inflação, mesmo sob o peso da crise cambial vivida em seu primeiro mandato (1995-1998). Já em 2002, diante de choques externos (crise das pontocom e incertezas pós-11/09) e internos (risco-Lula), o governo enfrentou restrições mais severas, mas manteve a expansão de custeio e investimento para suavizar o ambiente de desconfiança.

Lula, depois de manter postura mais austera nos três primeiros anos do mandato, promoveu robusta expansão de crédito e do número de beneficiários do Programa Bolsa Família, em 2006. Em 2010, às vésperas da eleição que elegeu Dilma Rousseff, o gasto primário federal chegou a 18,6% do PIB, quase 1,5 ponto percentual acima da média dos anos anteriores. A sucessão de 2014 se tornou o exemplo mais emblemático do populismo fiscal no Brasil, quando Dilma concedeu desonerações tributárias que reduziram a arrecadação em cerca de 1,5% do PIB, promoveu subsídios bilionários via Tesouro e implementou políticas de represamento de preços de energia e combustíveis. O resultado imediato foi uma inflação artificialmente controlada até outubro, seguida de um ajuste brutal em 2015. A crise fiscal que sucedeu o pacote de bondades de Dilma resultou em seu impeachment, levando Michel Temer ao Palácio do Planalto.

A baixíssima popularidade do mandatário e sua ausência nas urnas em 2018 reduziram os incentivos ao uso do instrumento fiscal para fins eleitorais, ainda que medidas pontuais tenham sido adotadas, como a liberação extraordinária de recursos do FGTS, com impacto direto sobre o consumo no período pré-eleitoral. Jair Bolsonaro, por fim, em sua tentativa fracassada de reeleição, criou o Auxílio Brasil de R$ 600, reduziu tributos sobre combustíveis e energia e ampliou benefícios sociais — medidas que custaram aproximadamente R$ 41 bilhões ao Tesouro em 2022, resultando em u déficit primário de 2,2% do PIB.

Com a proximidade do pleito de 2026, uma vez mais o instrumento fiscal responde ao calendário eleitoral. Lula se aproxima do fim de seu terceiro mandato em meio a pressões sociais e fiscais, com necessidade de consolidar apoio político e enfrentar uma eleição altamente polarizada. A tentação de expandir benefícios, aliviar tarifas e conceder isenções é grande, e o governo Lula III já corre contra o tempo para adotar medidas de apelo eleitoreiro: isenção do Imposto de Renda para faixas mais baixas de renda, subsídios ao gás de cozinha, reduções de tarifas de energia elétrica e discussões sobre gratuidade no transporte público urbano. Todas iniciativas com impacto fiscal e claro componente eleitoral.

A institucionalização desses ciclos mina qualquer tentativa de criar regras fiscais duradouras. O teto de gastos, aprovado em 2016, não resistiu ao calendário político de 2022. O novo arcabouço fiscal, aprovado em 2023, já mostra sinais de fragilidade diante da pressão por gastos sociais em 2025 e 2026. O dilema é simples: como convencer um governo incumbente a respeitar limites fiscais quando as urnas estão próximas e o eleitorado valoriza alívio imediato mais do que estabilidade futura?

A resposta talvez esteja menos na economia e mais na política. Enquanto a reeleição e a competição eleitoral permanecerem como incentivos dominantes, os governos tenderão a usar o orçamento como arma de sobrevivência. O eleitor, por sua vez, responde premiando quem entrega ganhos de curto prazo.

Assim, o Brasil se aproxima de mais um ciclo político-eleitoral em que a lógica é conhecida e o resultado previsível: expansão fiscal agora, dificuldades macroeconômicas depois. O país parece incapaz de escapar dessa armadilha. Desde 1988, governos de diferentes matizes ideológicos repetem a mesma receita eleitoral: gastar mais antes da eleição, ajustar (ou tentar ajustar) depois. A teoria de Nordhaus e seus desdobramentos explicam parte dessa lógica, mas a prática brasileira mostra como ela se radicaliza em sociedades desiguais e instituições frágeis. E, desta vez, o custo posterior pode ser ainda maior, posto que o espaço fiscal é cada vez menor, com a dívida bruta do governo geral já superando 77% do PIB e os gastos obrigatórios comprimem a capacidade de manobra.

No fim das contas, a democracia brasileira consolidou-se, mas naturalizou os ciclos eleitorais como parte do jogo. O eleitor já espera benefícios a cada quatro anos; os governos entregam; e as contas públicas carregam o peso desse arranjo. A única dúvida que permanece é se algum dia o país será capaz de inverter essa lógica e construir um ciclo virtuoso em que estabilidade fiscal e responsabilidade política não sejam inimigas — mas aliadas do desenvolvimento de longo prazo.

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João Macêdo
Jornalista formado pela Universidade Federal de Pernambuco, com experiência em redação, assessoria de imprensa e análise de dados.

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