A proposta que ameaça a autonomia do Banco Central coloca em risco a estabilidade da moeda e abre caminho para a politização da economia
Em uma semana turbulenta, o Brasil assiste ao julgamento do primeiro presidente judicialmente acusado de sedição e tentativa de golpe de estado (imaginário ou não, pouco importa) e aguarda os desdobramentos das sanções, comerciais e civis, aplicadas pela maior potência do planeta contra a nossa terra dos jabuticabais e a algumas jabuticabas em particular. Em meio a um noticiário inédito por aqui, um importante tema em discussão parlamentar tem passado quase despercebido, mas tem implicações muito mais profundas do que a temporária crise diplomática com os EUA ou os devaneios autoritários – e insustentáveis no tempo – de um dos poderes da República: líderes dos partidos do Centrão articulam um projeto que permitirá a destituição de diretores do Banco Central pelo Congresso.
O dispositivo, que tramita em regime de urgência, impõe um aditivo a Lei Complementar nº 179, de 2021, que instituiu a tão sonhada autonomia do Banco Central, e prevê que, em situações de crise financeira, a prerrogativa de controle sobre a política monetária seja transferida para a arena política, estendendo a previsão legal, definida pela supracitada lei, de destituição de diretores da autoridade monetária, ao Congresso Nacional. O pano de fundo para a ação encabeçada pelo Progressistas é a crise em torno do Banco Master, que realizou operações com alta alavancagem nos últimos anos e viu seus balanços comprometidos. O banco realizou ofertas de títulos de dívida, sobretudo Certificados de Depósito Bancário (CDB), com rentabilidade muito acima dos parâmetros do mercado e aplicou o dinheiro levantado em investimentos pouco sólidos e de baixa liquidez, como precatórios e participações em empresas sem capacidade econômica para garantir a liquidez dos empréstimos, o que acabou por comprometer os balanços da instituição.
A iminente insolvência do Master levou a uma intervenção no mínimo questionável. O Banco de Brasília (BRB), controlado pelo governo do Distrito Federal, anunciou a aquisição de 58% do banco, por cerca de R$ 2 bilhões, sendo o restante dos passivos vendidos ao BTG Pactual, ao grupo J&F e a três sócios do Master. A operação foi aprovada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), mas ainda espera a concordância do órgão regulatório, o Banco Central. E é exatamente na instância responsável pela regulação que reside o impasse para a consecução da medida. A autorização para a operação depende da Diretoria de Organização do Sistema Financeiro de Resolução do Banco Central, ao passo que a liquidação do banco está a cargo da diretoria de Fiscalização. Ocorre que se uma vez autorizada a aquisição dos passivos pelo BRB, uma eventual fragilização dos balanços do banco estatal implicaria responsabilização legal do mandatário da primeira diretoria, ao passo uma negativa deste em autorizar a operação pode implicar o responsável pela segunda, em caso de uma liquidação do Master. Por resultado, há um impasse entre os diretores.
Para resolver o problema, os líderes do Congresso entraram em campo e resgataram um projeto apresentado, anos atrás, pelo então deputado Camilo Capeberibe, alterando-o para complementar a Lei 179. À primeira vista, a proposta parece razoável: se há crise bancária, a autoridade supervisora deve responder por eventuais falhas. Mas a questão é mais complexa e envolve o crescente lobby de fintechs e pequenas e médias instituições financeiras junto ao Congresso. A lógica é simples: tais instituições, menos robustas do que seus pares de maior envergadura, têm oferecido retornos altíssimos para empréstimos e, sem o guarda-chuvas de proteção do Banco Central, se veriam obrigadas a operar com taxas menos competitivas e a controlar seu nível de alavancagem.
Ao defender os interesses desses players, sua tropa de choque parlamentar abre espaço para retroagir a autonomia operatória do Banco Central, conquistada após décadas de amarga espera, e devolver à instância política poderes para interferir na política monetária do país, com consequências catastróficas, muito além das casualidades de momento e interesses paroquiais de banqueiros irresponsáveis. Hoje, sob a regência da Lei 179, a destituição de diretores do Banco Central pode ser requerida pelo Presidente da República somente a pedido do diretor, por impedimentos de saúde deste, por condenação judicial ou em caso de as metas do mandato da autarquia, definidas pelo Conselho Monetário Nacional, não serem alcançadas. No novo texto, a Câmara dos Deputados poderá abrir processo de destituição, que seria aprovada pelo Senado, quando “a condução das atividades do Banco Central for incompatível com os interesses nacionais”. Em se considerando que o conceito de “interesse nacional” é bastante elástico, o projeto, na prática, entrega aos interesses políticos do Congresso os rumos das decisões de política monetária.
O risco de politização da autoridade monetária não pode ser negligenciado. A autonomia do Banco Central não é uma excentricidade tecnocrática, mas um arranjo institucional fundado em vasta literatura econômica e em experiências internacionais consolidadas. Desde o seminal trabalho de Finn Kydland e Edward Prescott, de 1977, que lhes rendeu o Prêmio Nobel de Economia, o problema da inconsistência temporal da política monetária tem sido consensual na literatura econômica. Os autores demonstraram que governos eleitos têm incentivo a manipular juros no curto prazo, gerando inflação futura e bancos centrais independentes surgem justamente como solução de compromisso: delega-se a política monetária a uma autoridade com mandato estável para garantir credibilidade intertemporal, retirando do mundo da política os meios de manipulação da política monetária para obtenção de ganhos eleitorais, protegendo a moeda das conveniências do calendário eleitoral. Evidências empíricas reforçam as tais conclusões, como aquelas apresentadas por Alberto Alesina e Lawrence Summers, em 1993, que mostraram que países com bancos centrais mais independentes apresentavam inflação estruturalmente mais baixa, sem perda significativa de crescimento econômico. Mais recentemente, pesquisas do FMI (2018) e do Banco de Compensações Internacionais (BIS, 2022) confirmaram que a autonomia ajuda a ancorar expectativas de inflação, reduzir prêmios de risco e estabilizar ciclos financeiros.
No Brasil, até 2021, a ausência de mandatos fixos para diretores do BC era uma anomalia. O presidente da República podia substituí-los a qualquer tempo, tornando a política monetária refém de humores políticos. A Lei 179 corrigiu essa distorção: fixou mandatos de quatro anos, não coincidentes com o presidencial, e estabeleceu critérios objetivos para exoneração. A medida mostrou-se exitosa já em seu primeiro ciclo eleitoral, quando permitiu ao Banco Central resistir às irresponsáveis investidas de Lula contra o comportamento – exemplar – do Comitê de Política Monetária na condução da política de juros.
A proposta atual, no entanto, ameaça esse alinhamento. Se o Congresso ganhar poder de destituir diretores sob a justificativa genérica de “crise financeira”, abre-se a porta para que pressões conjunturais ditem a política monetária. É ingenuidade supor que o Legislativo, permeado por interesses setoriais e eleitorais de curtíssimo prazo, resistirá à tentação de usar essa prerrogativa em momentos de impopularidade dos juros ou de instabilidade fiscal. As consequências são previsíveis. Primeiro, a credibilidade da política monetária se enfraquece e investidores passam a embutir em suas projeções o risco de ingerência política, o que eleva a curva de juros de longo prazo. Segundo, a eficácia da política monetária se reduz, posto que a desancoragem das expectativas tende a levar o Banco Central a elevar juros mais do que o necessário para restabelecer a confiança. Terceiro, aumenta-se a instabilidade financeira, pois crises bancárias exigem respostas rápidas e impopulares — justamente as mais vulneráveis à interferência política. O risco, portanto, reside ingerência política, e a história nos mostra que países cujos bancos centrais foram capturados por governos viveram hiperinflações, crises cambiais e desorganização financeira, como Argentina, Turquia e Venezuela. A lição é clara: quando a moeda se torna refém da política, quem paga o preço é a população, com inflação alta e instabilidade.
O caso do Banco Master, mergulhado em interesses lobistas, não pode ser o estopim para mutilar a autonomia da autoridade monetária. No limite, o que está em jogo não é a diretoria do Banco Central, mas a credibilidade da moeda brasileira. A autonomia conquistada em 2021 foi uma vitória institucional rara em um país habituado ao patrimonialismo, e não é um preciosismo de tecnocratas, mas um seguro coletivo contra os desvios da política. E, como todo seguro, só cumpre sua função se não for rasgado diante das conveniências de momento.