Como os Estados Unidos usaram o protecionismo para construir poder e por que ele volta agora
Donald Trump está vencendo sua guerra tarifária, não há como negar. Após distribuir sua metralhadora de tarifas mundo afora, o presidente americano vem obtendo vitória após vitória, dobrando os joelhos de seus principais parceiros econômicos que, sem opções, entregaram acordos favoráveis à maior economia do mundo. O que muitos desconhecem, entretanto, é que a estratégia de Trump não é nova e tem sido amplamente utilizada pelos americanos. Desde a sua fundação, os EUA tiveram na política comercial um instrumento estratégico para a construção de uma identidade econômica, o que muito se distancia da imagem, construída por muitos, de uma nação defensora do livre mercado. A atual onda de acordos comerciais, realinhamentos de cadeias de valor e incentivos internos promovidos por Washington — não apenas sob a liderança de Trump, mas também pela administração Biden — pode ser compreendida como um retorno sofisticado às origens do protecionismo estratégico, com roupagens adaptadas à era da globalização digital e das disputas geopolíticas com a China.
Para entender a lógica atual, é essencial percorrer os principais marcos históricos da política comercial americana, desde a independência até os dias de hoje. Após a independência, em 1776, o jovem país enfrentava sérias dificuldades fiscais, ausência de uma moeda nacional estável e dependência de produtos manufaturados europeus, especialmente britânicos. A Guerra de Independência, os embargos britânicos e a prevalência do Dolar espanhol como meio de troca predileto dos antigos colonos, degradaram os fundamentos econômicos do país e levantaram, entre os Pais Fundadores, o célebre debate tarifário que, muito além da política comercial, refletia visões opostas sobre o futuro da jovem república e seu modelo de desenvolvimento. De um lado, Alexander Hamilton defendia o uso de tarifas como instrumento estratégico para proteger e fomentar a industrialização doméstica. Em seu influente Relatório sobre as Manufaturas (1791), ele propôs tarifas sobre produtos importados, subsídios e incentivos fiscais para estimular a criação de uma base manufatureira capaz de garantir a independência econômica dos EUA, então vulnerável à hegemonia industrial britânica, o que seria essencial não apenas a criação de uma base produtiva para o país, mas era um pré-requisito para a conquista da soberania nacional e manutenção da segurança da República. Em oposição, Thomas Jefferson e James Madison, representantes da tradição agrária sulista, advogavam por tarifas baixas e livre comércio, temendo que a concentração industrial nas colônias do norte ameaçasse a autonomia dos estados e criasse uma elite financeira centralizadora. Eles acreditavam que a república deveria se basear em pequenos proprietários rurais independentes, e que a abertura comercial com a Europa garantiria os bens manufaturados de que o país necessitava. Esse embate ideológico entre industrialismo e agrarismo moldaria a política econômica dos EUA ao longo do século XIX, com oscilações entre o protecionismo e o liberalismo, conforme mudavam os interesses regionais e os desafios geopolíticos.
O intenso debate que opôs o modelo industrialista de Hamilton e os interesses das plantations sulistas, especialmente as da Virgina de Jefferson, teve por vitorioso o primeiro, de modo que as proposições de Hamilton lançaram as bases para uma doutrina econômica que prevaleceria, com variações, ao longo do século XIX, e moldaram profundamente o papel do Estado na economia americana nascente. Ao longo do século XIX, os EUA adotaram tarifas alfandegárias elevadas como forma de proteger a indústria doméstica e gerar receita para o governo federal — uma vez que os impostos diretos ainda não estavam sistematizados, sendo uma das únicas fontes de receita da União. Desde a Independência até o início da Guerra Civil, em 1861, foram adotadas inúmeras medidas altamente protecionistas, em um modelo similar ao que no Brasil demos o nome de Industrialização por Substituição de Importações, ainda que, nos EUA, o caráter arrecadatório tenha tido grande protagonismo.
Logo em 1789, poucos anos após o fim da Guerra de Independência, foi promulgada a primeira lei tarifária do país, estabelecendo alíquotas moderadas, com foco, sobretudo, na geração de receita tributária para a rolagem da dívida de guerra contraída pela nova república. Em 1816 foi implementada a primeira tarifa com objetivo declaradamente protecionista, imposta após a Guerra de 1812 – contra o Império Britânico – para proteger a indústria contra a concorrência de sua antiga metrópole. Em 1824 e 1828, houve uma significativa expansão das barreiras tarifárias, naquelas que ficaram conhecidas por Tarifas das Abominações. Produtos como ferro, lã e algodão foram duramente taxados, em até 45%, prejudicando os exportadores sulistas e aumentado as tensões entre os estados agrários e aqueles focados na industrialização por substituição de importações. A década de 1830 foi marcada por uma amenização das Tarifas das Abomnações, fruto de intensa pressão política dos estados do sul. Em 1832, foi aprovada a redução de algumas das tarifas definidas em 1828, não sendo, porém, suficiente para colocar água na fervura política e teve por resultado a Crise da Nulificação, capitaneada pela Carolina do Sul e que defendia o direito de um estado embargar decisões federais. O presidente Andrew Jackson conseguiu autorização para o uso de força militar contra eventuais insurgências federativas o que elevou a tensão e abriu a possibilidade de um conflito armado entre os entes federados. Para contornar o problema, foi aprovado, no ano seguinte, o Compromisso Tarifário, um dispositivo legal que estabeleceu reduções graduais nas tarifas ao longo de uma década, visando acalmar os conflitos seccionais.
Nas duas décadas seguintes, houve oscilações na política comercial, refletindo as crescentes tensões econômicas e regionais entre o norte industrializado e o sul agrário. A Tarifa Black, de 1842, foi uma resposta à Tarifa de Compromisso de 1833 e à queda na arrecadação federal resultante da crise econômica vivida pelo país, sendo impostas altas tarifas protecionistas, em especial para produtos têxteis e metalúrgicos, aumentando significativamente o descontentamento do Sul. Em 1857, o bom momento da economia e as cada vez mais fortes pressões dos agricultores sulistas levaram à redução das tarifas a médias de 20%. A queda arrecadatória subsequente, contudo, levou a uma grande pressão para a imposição de novas tarifas, aumentando a tensão entre as unidades da federação.
O choque de interesses econômicos regionais, somados a divergências sobre a escravidão, o equilíbrio de poder político e o modelo de desenvolvimento nacional, alimentou o clima de secessão, que escalou em 1860, quando Abraham Lincoln, do protecionista Partido Republicano, foi eleito, sem apoio do Sul. Muitos estados sulistas interpretaram sua vitória como uma ameaça direta — tanto à escravidão quanto ao modelo econômico sulista — e iniciaram o processo de secessão, que culminaria na Guerra Civil em 1861. Após o conflito fratricida, o chamado período da Restauração (1865-77) foi marcado pelo predomínio dos Republicanos, o que levou a uma imposição dos interesses nortistas em detrimento das demandas dos desorganizados e devastados estados do sul, levando a um recrudescimento do protecionismo industrial via tarifas, que ainda durante o conflito haviam sido elevadas para financiar o esforço de guerra e se mantiveram em patamares altos após a contenda, sendo focados os setores de indústria pesada, têxtil e siderúrgico, fomentando o desenvolvimento industrial nortista e ampliando as disparidades regionais no interior da União.
Na última década do século, um novo capítulo foi escrito na história da politica comercial americana. Conhecida como Era McKinley, o período foi marcado por uma fortíssima elevação das tarifas de importação, atingindo valores médios próximos a 50%. O período leva o nome de William McKinley, congressista que propôs, em 1890, a lei que definiu as barreiras supracitadas e que, em 1897, se tornou presidente, até seu assassinato em 1901. McKinley via o protecionismo como instrumento não apenas econômico, mas moral e patriótico. Sob sua liderança, os EUA consolidaram-se como uma potência industrial emergente, com um salto de 50% na produção industrial, entre 1897 e 1901, e a participação do setor manufatureiro no PIB ultrapassando 35% no mesmo período. A retórica de McKinley, amplamente apoiada pelo Partido Republicano da época, ligava tarifas a emprego, segurança nacional e soberania econômica. Não à toa, Trump vem recorrentemente evocando a figura do presidente assassinado, como quem busca emular, para os dias atuais, os feitos de seu antecessor protecionista.
Apesar do impulso protecionista do século XIX, o início do século XX viu os EUA gradualmente se abrirem ao comércio internacional. No entanto, o trauma da Grande Depressão de 1929 reacendeu o isolacionismo econômico com a Lei Smoot-Hawley (1930), que elevou as tarifas de importação para mais de 900 produtos, atingindo valores médios de 60%. O resultado foi catastrófico: a medida provocou retaliações de dezenas de países e aprofundou o colapso do comércio global, alimentando, inclusive, o isolacionismo internacional que ajudou a cimentar as condições para a eclosão da II Guerra Mundial.
O aprendizado desse desastre moldou a política externa dos EUA no pós-Segunda Guerra Mundial. Sob a liderança de Franklin D. Roosevelt e, mais tarde, Harry Truman, os EUA promoveram a criação do GATT (1947), precursor da Organização Mundial do Comércio (OMC), com o objetivo de criar uma ordem econômica liberal que favorecesse o comércio, mas sob regras e instituições lideradas pelo próprio Ocidente — especialmente Washington. Durante os anos dourados que se sucederam ao conflito global, os EUA mantiveram uma postura relativamente aberta ao comércio, especialmente com aliados estratégicos. Contudo, mesmo nesse período, as proteções agrícolas, subsídios industriais e medidas antidumping eram utilizadas com frequência. Aos anos finais da Guerra Fria e com a ascensão do grande pacto liberal liderado pelo governo Ronald Reagan, o mundo se viu imerso em um período de aprofundamento da interdependência econômica, a qual chamamos de globalização, atingindo níveis ainda mais elevados com a ascensão da China no mercado internacional.
A crise do multilateralismo, a partir da última década, a consolidação de uma nova guerra fria entre EUA e China e a desindustrialização americana – levando a perdas de empregos estáveis para grande parte da população – alimentaram a reconfiguração da política comercial dos EUA. A retórica do livre comércio passou a ser confrontada com a realidade das desindustrializações regionais e da crescente dependência de cadeias produtivas externas. A administração Donald Trump (2017-2021) marcou uma virada explícita. Seu slogan “America First” se traduziu na imposição de tarifas sobre aço, alumínio e produtos chineses, com base em argumentos de segurança nacional e propriedade intelectual. Além disso, Trump abandonou negociações multilaterais como a Parceria Transpacífico (TPP), renegociou o NAFTA, resultando no USMCA, e iniciou uma guerra comercial direta com Pequim.
Se havia dúvidas sobre a continuidade dessa linha, a administração Joe Biden deixou claro que, embora a retórica se diferenciasse da de seu antecessor, a substância seria mantida. Medidas protecionistas como o CHIPS Act (2022) e o Inflation Reduction Act (IRA) distribuíram incentivos à produção interna. Ademais, Biden promoveu a revisão de acordos comerciais – mais de 30 se encontravam em negociação ou revisão em 2024, de acordo com o Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR), com foco em temas como segurança digital, cadeias de suprimentos críticas e regras trabalhistas. Biden, não se distanciando de Trump, promoveu acordos seletivos voltados a aliados geopolíticos, com cláusulas que excluem ou dificultam a presença chinesa, sobretudo.
Com base no exposto, podemos concluir que a atual estratégia comercial dos Estados Unidos não representa uma ruptura com o passado, mas sim uma atualização pragmática do protecionismo industrial que moldou sua ascensão. A lógica de McKinley — tarifas como instrumento de soberania e emprego — ressurge sob novas formas: incentivos fiscais, subsídios verdes, acordos bilaterais com exigências geopolíticas. A história, como sempre, não se repete, mas rima, nas palavras atribuídas a Mark Twain, e a política comercial dos EUA continua sendo, antes de tudo, um reflexo de seus interesses internos, sua geopolítica e sua busca constante por manter a primazia econômica global — com ou sem livre comércio.