A guerra comercial de Trump contra o Brasil vai além da economia e expõe tensões diplomáticas e ideológicas
Após passar quase ileso do liberation day, de abril, onde lhe foram impostas tarifas de importação na conta mínima, de 10%, o Brasil se viu envolto a uma das mais dantescas crises de sua história recente. Em 9 de julho de 2025, o governo dos Estados Unidos anunciou mais um aumento de tarifas sobre importações brasileiras — elevando para 50% tarifas que já haviam sido aplicadas nos setores de aço e alumínio, e agora se estendendo a produtos de agronegócio e indústria como carne bovina, café, suco de laranja, aeronaves e armas. Diferentemente do padrão de tarifação que tem sido aplicado aos países, a postura do governo americano em relação ao Brasil não está associada a busca por reverter os déficits comerciais do país em relação ao mundo. Em termos gerais, após a imposição inicial de abril, o governo americano tem reduzido as tarifas após negociações bilaterais com os países. O caso brasileiro foi o oposto. Ademais, o Brasil é um dos poucos países a não registrar um superávit na balança comercial em relação aos EUA, contraindo déficits 2007 e atingindo U$7,4 bilhões em 2024. A ação norte-americana é explicitamente política, associada ao julgamento do ex‑presidente Jair Bolsonaro e uma resposta à atuação do Supremo Tribunal Federal do Brasil.
Não é possível, contudo, reduzir a atuação americana a uma resposta política ao julgamento de Bolsonaro. Dois componentes devem ser levados em conta e podem ser os grandes motivadores da agressividade de Trump. E primeiro lugar, o governo Lula tem mostrado sua faceta antiamericana desde o início do governo, catalisada pela vitória de Trump no ano passado. Lula, além de apoiar publicamente Kamala Harris e proferir declarações pouco elogiosas ao candidato republicano (associando-o ao velho fascismo megalomaníaco que existe apenas nas mentes mais incautas da esquerda mundial), o brasileiro não fez acenos ao colega americano, que sequer nomeou um embaixador no Brasil até hoje. Nos últimos meses, em vez de buscar baixar a temperatura das relações diplomáticas internacionais, como o tem feito todos os líderes mundiais (inclusive aqueles que foram ameaçados por Trump), Lula tem subido o tom em relação aos EUA, sobretudo na proposição de substituição do dólar como meio de troca global. Nas últimas semanas, este parece ter sido um estratagema assumido pelo governo para as eleições do próximo ano. A reboque da estratégia de comunicação que o governo adotou devido a seus conflitos com o Congresso, em que a velha dicotomia entre pobres e ricos – tão aclamada pela esquerda latino-americana – foi retomada, a retórica antiamericana e nacionalista foi potencializada – rendendo os dividendos de sempre entre a militância petista. O discurso de Lula não foi bem recebido em Washington e parece ter sido interpretado como uma aproximação perigosa com a China e outros atores anti-ocidentais o que, em um contexto de uma nova guerra fria, pode ter motivado a reação americana.
Em segundo lugar e, ao menos para mim, mais importante, reside o conflito entre as tentativas de regulação das redes sociais por parte do STF e as Big Techs. É sabido que o vale do silício embarcou no projeto de Trump e que as tentativas de regulação das redes – sobretudo na Europa – preocupam – e muito – os executivos dessas companhias. E o Brasil se tornou protagonista e pioneiro no confronto entre Estado e Big Techs desde que as redes sociais se tornaram objeto de atuação do STF no “Inquérito do Fim do Mundo”, nas palavras do ex-ministro Marco Aurélio Mello. No escopo deste inquérito – sem tipo definido e aberto de ofício, onde a Corte atua como juiz, júri, investigador e vítima, em um descalabro constitucional sem tamanho -, contas têm sido suspensas, posts apagados e até mesmo o X foi tirado do ar por semanas. Nesse contexto, o Brasil se tornou uma espécie de laboratório para a censura, com riscos de exportar o modelo para outros lugares, especialmente a Europa, que já está de olho nos mecanismos de censura prévia que criamos por aqui. As Big Techs reagiram e pressionaram o governo americano por meio da poderosíssima entidade lobista CCIA (Computer & Communications Industry Association). Em relatório ao Office of the U.S. Trade Representative, a CCIA criticou decisões do STF como “ordens secretas e censura ilegal” contra plataformas norte-americanas. O documento contribuiu para a adoção de uma investigação comercial sob a cláusula Section 301 do Trade Act de 1974. Além disso, a associação saudou a medida publicamente, afirmando que a ação traria “alívio para as operações da indústria no Brasil” e restauraria comércio digital “justo e aberto”. Impossível ser mais claro, não?
A motivação política e não comercial da contenda nos coloca em condições particularmente difíceis de negociação, posto que sua resolução passaria por questões políticas e institucionais internas. A rodada de sanções pessoais a autoridades brasileiras confirma isso. Desta forma, o cenário mais provável é que não haja meios de negociação no curto prazo e tenhamos que lidar com os efeitos da tarifação, a partir de primeiro de agosto, absorvendo seus efeitos deletérios. E isso se considerarmos que não haverá uma retaliação brasileira, o que seria uma insanidade por parte do nosso governo. Em um primeiro momento, os impactos mais visíveis se darão nos setores exportadores – sobretudo naquelas empresas mais intensamente orientadas ao mercado americano – e no câmbio, que já opera na casa de R$5,60 depois de bater R$5,40. O setor de carne bovina, por exemplo, já sentiu o baque e exportadores como Minerva já interromperam remessas para os EUA e desaceleraram compras de gado devido à incerteza da demanda americana. No café e suco de laranja, as reações nos preços futuros nos EUA foram instantâneas: os contratos de suco congelado subiram mais de 10%, e os de café cerca de 6%, refletindo a forte dependência dos EUA de fornecedores brasileiros (30% do café e 60% do suco nacional).
Em setores industriais a situação pode ficar ainda pior. A Embraer, que destina a maior parte de suas aeronaves executivas e regionais ao mercado americano (cerca de 63% a 75% das vendas), já registrou queda de até 8,5% no valor de suas ações nos dias anteriores ao anúncio e o board da empresa alertou que o choque das tarifas pode implicar, para modelos como o E175, em um adicional de custos de US$ 9 milhões por unidade exportada. No segmento de aço e alumínio, o Ipea já havia calculado anteriormente que tarifas de 25% levariam a queda de 11,27% nas exportações brasileiras, com perdas estimadas em US$ 1,5 bilhão e redução de 2,19% na produção do setor. Agora, nesse novo patamar tarifário, que dobra a sobretaxa anterior, as empresas indicam potencial de redução de até 35% no volume exportado e risco de subutilização de capacidade. Empresas bastante competitivas no mercado americano como a produtora de armas, Taurus, que tem cerca de 80% de sua receita obtida no mercado americano, e a desenvolvedora de equipamentos elétricos e automação industrial, WEGE, cuja receita depende em cerca de 25% dos EUA, podem sofrer reveses significativos e há pouca capacidade de redirecionamento de sua produção para outras geografias.
Em relação aos efeitos macroeconômicos, a retração das exportações sobre o balanço de pagamentos reduzirá a entrada de dólares, pressionando o real e alimentando a inflação via aumento de custos de importações, ainda que no curtíssimo prazo commodities que deixarem de ser exportadas devam aumentar a oferta no mercado interno e amenizem os preços, sobretudo de alimentos. A combinação de câmbio pressionado e inflação crescente tende a levar o Banco Central a manter juros elevados por mais tempo, prejudicando consumo, crédito e investimentos no país. Em relação ao crescimento da economia, projeções indicam retração do PIB em cerca de 0,3% a 0,4%, especialmente se as tarifas persistirem por mais de um ano. Em termos financeiros, podemos esperar um aumento do risco-país e, consequentemente, uma menor atratividade do Brasil, que tende a reduzir os fluxos de investimento externo direto e de portfólio, elevando o custo de captação via mercado internacional e pressionando as reservas cambiais.
A pressão americana nos coloca na incômoda posição do epicentro de um furacão político e diplomático, condição a qual não estamos acostumados. O fato das motivações da investida de Trump não serem comerciais, mas políticas e estratégicas, tornam imprevisíveis os rumos da crise, podendo ocorrer uma escalada gravíssima e que pode levar a um rompimento entre os dois países. É preciso que o governo brasileiro não busque surfar na onda e aumente ainda mais as tensões em busca de recuperar a baixíssima popularidade de Lula. Esperemos as cenas dos próximos capítulos.
As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do N3 News