A discussão sobre os e-sports serem classificados como esportes não é apenas conceitual, mas traz implicações importante para além do mundo virtual
Se te perguntarem o que é esporte, você sabe responder? Apesar de parecer simples, a discussão sobre o que é e o que não é esporte é mais complexa do que muitos imaginam. O conceito social de esporte é muito subjetivo e abre margem para opiniões divergentes sobre o assunto. Esta discussão não é apenas conceitual, mas impacta diretamente em decisões concretas como, por exemplo, o alocamento de recursos do Ministério do Esporte.
Em 2023, a declaração da até então ministra da pasta Ana Moser reacendeu este debate, especificamente sobre a classificação dos esportes eletrônicos. Na época, a medalhista olímpica de vôlei feminino em Atlanta-1996 afirmou que e-sport não deveria ser considerado esporte e, por isso, não seria incluído no orçamento governamental. A ministra chegou a dizer que o esporte eletrônico é uma indústria de entretenimento e colocou a categoria ao lado de artistas.
“A meu ver, o esporte eletrônico é uma indústria de entretenimento, não é esporte. ‘Ah, mas o pessoal treina para fazer’. Treina, assim como o artista. Assim como a Ivete Sangalo também treina para dar show e ela não é atleta da música. Ela é simplesmente uma artista que trabalha com entretenimento. O jogo eletrônico não é imprevisível. Ele é desenhado por uma programação digital, cibernética. É uma programação, ela é fechada, ela não é aberta, como o esporte” — disse Ana Moser em entrevista ao UOL.
Antes de entrar na questão sobre as consequências desta declaração (investimento público), é preciso abordar a justificativa da ex-ministra. Ao afirmar que os e-sports são previsíveis, ela desconsidera toda a ação humana que os atletas têm dentro de um jogo. Ora, no cenário competitivo de esportes eletrônicos os jogadores não enfrentam uma máquina ou um algoritmo. Seus adversários são pessoas. Eles estão, de fato, inseridos em um “mundo virtual”, mas suas ações são recebidas e respondidas por outro ser humano.
E aqui está um ponto importante para diferenciar. Nem todo jogo de videogame é um e-sport. Aliás, a minoria dos jogos virtuais se encaixam na categoria de esportes eletrônicos. Por exemplo, títulos como GTA, The Last of Us, Red Dead Redemption entram em uma categoria de jogos em estilo mundo aberto. Não há competição esportiva. Neles, o jogador se insere em uma história roteirizada, ao mesmo tempo que constrói a sua própria trajetória e identidade dentro daquele mundo. É quase como se você estivesse dentro de um filme. É entretenimento.
Já num esporte eletrônico, como Counter Strike, League of Legends e Valorant, o jogo cria uma estrutura virtual com regras pré-definidas que coloca frente a frente uma equipe contra a outra. Existe um objetivo claro: vencer o time adversário.
E, veja bem, este paralelo entre o que é esporte e o que é lazer/entretenimento também se aplica às modalidades ‘tradicionais’. Ninguém discute se o futebol é esporte ou não. Mas derivações do futebol, como jogar uma altinha na praia, se enquadram melhor como lazer. Sim, a altinha é uma atividade física, mas não dispõe de uma estrutura e organização de uma competição esportiva.
Um exemplo mais claro disso é a diferenciação do levantamento de peso olímpico e o fisiculturismo. No levantamento de peso, vence o atleta que ergue a maior quantidade de peso em relação aos seus adversários. Para isso, os esportistas precisam desenvolver força, potência muscular, flexibilidade, coordenação, equilíbrio, concentração e precisão na execução técnica, com esforço sincronizado.
O fisiculturismo também reúne uma intensa atividade física para conseguir alcançar os resultados. Porém, mesmo que inserido em um contexto competitivo, a definição do vencedor de um Mr. Olympia não é esportiva. É uma competição estética. Avalia-se simetria, volume e harmonia dos músculos do competidor.
Mas como ficam os e-sports?
Dadas as explicações sobre o porquê os e-sports são competições esportivas, é preciso elucidar melhor a sua classificação como esporte em si. A grande discussão aqui baseia-se no esforço físico dos atletas nos e-sports. Isso acontece porque as pessoas visualizam o movimento dos atletas apenas no que elas enxergam dentro da tela. Mas não é bem assim.
O movimento gerado dentro da estrutura virtual parte de uma ação física feita pelo jogador. Quem não tem familiaridade com os e-sports ou não joga, por vezes, acaba não tendo dimensão do esforço necessário que os atletas profissionais estão submetidos. O nível de reflexo e raciocínio tático requeridos são altíssimos e só podem ser alcançados com inúmeras horas de treino e estudo in-game.
Estes atletas precisam manter uma rotina física e psicológica rígida para atingir este nível de performance. Além disso, o cenário competitivo de esportes eletrônicos muito se assemelha com campeonatos de esportes tradicionais. Os jogadores defendem uma equipe (clube/organização) e são cobrados por resultados tanto pelas organizações quanto pelas torcidas.
Assim, se entendemos o esporte como uma atividade competitiva, com preparação técnica, desempenho de excelência e paixão envolvida, não há como desconsiderar os e-sports. Claro, a natureza física é diferente – o esforço não está nas pernas ou nos pulmões, mas nas mãos, nos reflexos e no raciocínio tático. E isso não é exclusivo dos esportes eletrônicos. O xadrez, por exemplo, é reconhecido como esporte. Então, por que não o League of Legends ou o Counter-Strike?
Negar que os e-sports são esportes é negar que o esporte também evolui. Assim como o tênis de mesa ou o skate um dia foram vistos com desconfiança e hoje são modalidades olímpicas, os e-sports estão trilhando seu caminho. O futuro do esporte também é digital.
Investimento público é outra coisa
Voltando para a discussão promovida pela ex-ministra Ana Moser, tenho de concordar com ela. Os esportes eletrônicos não devem receber investimento público, ao menos por enquanto. O principal ponto aqui é o controle que as desenvolvedoras dos jogos têm sobre a organização competitiva dos games.
Os jogos eletrônicos representam propriedade intelectual de empresas privadas. Assim, toda a construção de um cenário competitivo dos jogos parte do interesse das próprias desenvolvedoras. São elas que organizam, ou vendem os direitos de organização dos torneios esportivos. A programação é fechada.
No caso do futebol, por exemplo, a FIFA pode até deter o monopólio das competições, mas não controla a prática do esporte. Além disso, na teoria, seria possível surgir uma nova entidade que substituísse a FIFA.
Ainda podemos citar outra questão importante: investir no esporte tradicional e, na sua prática, é também investir em saúde. O mesmo impacto não ocorre no e-sports. O investimento público em esportes eletrônicos seria proveitoso apenas no âmbito mercadológico de gerar emprego e entretenimento, mas é algo que já se desenvolve naturalmente com patrocínios privados e premiações dos torneios.
No fim, o conceito social de esporte seguirá sendo subjetivo e as pessoas continuarão tendo opiniões divergentes sobre o tema. A discussão sobre a classificação dos e-sports e outras possíveis modalidades nos ajuda a entendermos melhor sobre o que é esporte e o que implica ser considerado um.
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