O governo parece insistir em calcular o ajuste fiscal com base em arrecadações hipotéticas e voluntarismos legislativos
Na última quarta-feira o governo decretou a Medida Provisória 1.303/2025, que define medidas compensatórias para o decreto que elevou as alíquotas de IOF e foi parcialmente revogado devido a forte pressão do Congresso Nacional. A nova peça propõe novas medidas arrecadatórias e a recalibragem das mudanças no IOF para que seja garantido o cumprimento das metas fiscais – que já assumiram um tom cômico – de déficit fiscal zero para 2025 e superávit de 0,25% em 2026.
Os principais pontos da medida podem ser divididos em duas grandes dimensões. A primeira é a recalibragem das alíquotas de IOF. A alíquota fixa para operações de crédito de empresas retorna a seu nível anterior ao decreto de Maio, 0,38%. As operações de risco sacado tiveram grande parte de seu aumento revertido, com uma incidência diária de 0,0082%. Em relação ao VGBL cobrado de fundos de previdência privada, o IOF apenas incidirá sobre aportes superiores a R$300 mil em 2025 e acima de R$600 mil em 2026. A alíquota aumentada, no decreto de Maio, para operações com cartão de crédito internacional e remessas ao exterior sem finalidade de investimento, por sua vez, foi mantida em 3,5%.
Uma segunda dimensão foi a instituição de novas tributações compensatórias à revisão das alíquotas de IOF. A MP instituiu o recolhimento de Imposto de Renda sobre títulos antes isentos, relativos aos créditos agrícolas e imobiliários e a debêntures incentivadas, cujos credores, a partir de 2026, terão de pagar 5% de imposto. A tabela regressiva de IR para aplicações financeiras em geral foi substituída por uma alíquota fixa de 17,5%, que também valerá para criptoativos, fundos imobiliários e Fiagros. Ainda em relação ao IR, os juros sobre capital próprio (JCP) tiveram seus ganhos tributados ampliados de 15% para 20%. Também foram aumentadas as alíquotas da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) de fintechs e seguradoras, de 9% para 15%, e do faturamento de bets esportivas, de 12% para 18%.
Com a MP, o governo espera um impacto fiscal entre R$7 e R$15 bilhões em 12 meses, o que permitiria, segundo o Ministério da Fazenda, que a meta fiscal fosse alcançada sem um novo contingenciamento de gastos. No entanto, mais uma vez, o governo aposta tolamente na ponta arrecadatória, sem operar um ajuste nas despesas, não se podendo esperar que a medida garanta o cumprimento das metas fiscais. Antes de mais nada, a margem arrecadatória esperada é elástica o suficiente para já acender o sinal de alerta e ainda que o teto da estimativa se concretize (o que é muito otimista), o valor representa menos de 0,15% do PIB brasileiro, e muito aquém do necessário para conter o rombo fiscal projetado para 2025.
O cenário é ainda mais desalentador se se consideramos o momento da economia brasileira e a natureza das medidas compensatórias. Em primeiro lugar, a economia apresenta sinais de desaquecimento e as projeções do mercado indicam um crescimento abaixo de 2% para 2025 (já em 1,6% de acordo com o Boletim Focus), abaixo da taxa necessária para uma expansão robusta da base tributária, o que compromete as expectativas de receita. Em segundo lugar, as receitas extraordinárias previstas pela MP são incertas, dependendo do comportamento do contribuinte, que pode reorganizar seus portfólios, decisões de investimento e remessa de dinheiro ao exterior, frustrando as estimativas da Fazenda. E há ainda o risco de judicialização das medidas, o que poderia adiar ou mesmo cancelar a arrecadação esperada. Tal qual a compensação proposta para a isenção do IR para ganhos de até R$5 mil mensais, a medida do governo aposta em uma arrecadação incerta para tapar um buraco fiscal certo.
Do lado das despesas, as obrigações constitucionais continuam pressionando. Os gastos com previdência, benefícios sociais, reajustes salariais e aumento de pessoal no setor público continuam subindo, e novas pressões são esperadas com o piso nacional da enfermagem. A resistência do governo em desvincular do piso constitucional as despesas em saúde e educação, bem como em manter os reajustes reais para o salário-mínimo e para os benefícios sociais, alimentam a bola de neve ao atrelar essas despesas obrigatórias ao crescimento real da economia. Esses gastos crescem acima da inflação e consomem grande parte do orçamento primário, deixando pouco espaço para cortes discricionários. Segundo o Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas do 1º bimestre de 2025, o governo federal precisaria de um ajuste adicional de pelo menos R$ 27 bilhões em receitas líquidas para manter a promessa de déficit zero para 2025. Mesmo com o esforço arrecadatório da MP, a conta simplesmente não fecha. O governo parece insistir em calcular o ajuste fiscal com base em arrecadações hipotéticas e voluntarismos legislativos, como se o mercado e os organismos internacionais ainda aceitassem promessas vagas como justificativa para notas promissórias em aberto.
Há ainda que se considerar que, mesmo que inócua fiscalmente, a MP tem grandes chances de ser derrubada pelo Congresso, que tem se mostrado avesso a aumentos de carga tributária. A própria base aliada do governo no Legislativo – fragilíssima – já dá sinais de cansaço com pautas impopulares em ano pré-eleitoral. A resistência pode ser atestada pelas declarações do presidente da Câmara, Hugo Motta, que enfatizou não ser capaz de garantir a aprovação do texto. Mesmo que não seja derrubada em sua integralidade, é quase certo que muitos trechos sejam alterados ou retirados pelo Congresso, o que fragilizaria o já combalido poder fiscal da medida.
No fim das contas, o que temos é um governo tentando ajustar as contas públicas com um cobertor curto. Cobre o pé, descobre a cabeça. E quando tenta puxar o cobertor para cima, percebe que não há mais colchão fiscal: só um buraco cada vez mais fundo — e cada vez mais caro.