Leonardo Luz: ‘A guerra que Trump finge ter impedido’

Leonardo Luz: ‘A guerra que Trump finge ter impedido’

Conflito entre Irã e Israel expõe limites da diplomacia americana e revela a fragilidade da ‘paz’ promovida por Trump

A escalada militar das tensões entre Israel e Irã, que já vinham esquentando desde os ataques do Hamas em outubro de 2023, culminou no primeiro confronto direto e aberto entre as duas potências regionais neste mês. A “Guerra dos 12 dias”, como Donald Trump a definiu, foi o ápice de uma disputa de décadas e parece pouco provável que se restrinja aos doze dias aclamados pelo presidente americano. Suas origens remontam à Revolução Islâmica de 1979, quando líderes religiosos que se opunham ao processo de ocidentalização do país promovido pelo Xá Reza Pahlavi se aliaram a militares insatisfeitos e derrubaram o monarca, estabelecendo um novo regime, teocrático xiita e antiocidental, que adotou uma postura abertamente hostil ao Estado israelense, considerando-o uma entidade sionista ilegítima, governando uma área que fora dominada por muçulmanos outrora.

Com o intuito de expandir seus tentáculos na região, Teerã adotou por estratégia, nos 46 anos que se seguiram ao início do regime dos Aiatolás, apoiar grupos armados que operam contra Israel, como o Hezbollah no Líbano, o Hamas e a Jihad Islâmica na Faixa de Gaza, o governo do clã Assad na Síria e, mais recentemente, as milícias xiitas no Iraque e os houthis no Iêmen. A rede de influência terrorista construída pelo Irã foi o pivô do longo conflito com o Estado judeu e se consolidou no que Teerã chamou de eixo da resistência nas últimas décadas.

No Líbano, desde os anos 1980, o Hezbollah se consolidou como grupo armado com representatividade política, tendo se tornado, em determinados momentos, a principal força do país. Em Gaza, o Hamas conseguiu vencer o Al Fatah nas eleições de 2006 e desde então controla o enclave, tendo forte apoio da Jihad Islâmica. A Síria, que estreitou laços com o país xiita durante a Guerra Irâ-Iraque (1980-88) ao ser um dos poucos países árabes a apoiar a República Islâmica durante o conflito, aumentou substancialmente a cooperação com Teerã nas últimas décadas, especialmente após a Primavera Árabe de 2011, quando o Irã passou a fornecer apoio militar, financeiro e logístico decisivo ao regime de Bashar al-Assad para ajudá-lo a resistir aos levantes internos e à guerra civil que se sucedeu. A aproximação iniciada pelo pertencimento da família Assad à seita alauita, uma vertente minoritária e heterodoxa do islamismo xiita, se tornou uma relação umbilical de apoio mútuo, transformando o regime de Damasco em um braço auxiliar iraniano e centro de operações militares diretas contra Israel. A invasão americana ao Iraque, em 2003, e a consequente fragmentação política do país, deram a Teerã a chance de dominar grandes áreas do antigo inimigo, se aproveitando da insatisfação da maioria da população, xiita, que fora controlada por décadas por uma minoria burocrática e militar sunitas. Centenas de milícias xiitas armadas espalhadas pelo território iraquiano são, hoje, o principal poder militar de fato no país. No Iêmen, a guerra civil que se arrasta por anos, tem seu protagonismo no grupo armado xiita houthis, que vem atacando embarcações que se dirigem ao Mar Vermelho para, sobretudo, atravessar o canal de Suez, causando grande insegurança para as companhias de shipping e de seguros, mundo afora.

Com o avanço do programa nuclear iraniano a partir da década de 2000, as tensões se intensificaram e ganharam dimensões mais dramáticas. A fim de evitar que o regime dos aiatolás dispusesse de um arsenal atômico, os EUA encabeçaram um acordo com a República Islâmica em 2015, o Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA). O acordo, firmado entre o Irã e o chamado P5+1 (EUA, Reino Unido, França, Rússia, China e Alemanha), previa que o Teerã limitasse o enriquecimento de urânio, reduzisse seu estoque nuclear e se submetesse a inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica e, em troca, haveria a suspensão de sanções econômicas que haviam sido impostas ao país persa. No entanto, em 2018, o então presidente Trump retirou unilateralmente os EUA do acordo e restabeleceu as sanções, levando o Irã a retomar gradualmente suas atividades nucleares. Desde então, as tentativas de renegociação, inclusive sob o governo Biden, esbarraram em impasses diplomáticos e desconfiança mútua, contribuindo para a escalada recente nas tensões entre os dois países.

E foi exatamente durante as negociações para o estabelecimento de um novo acordo que Israel deflagrou o ataque que deu início ao recente conflito. Após desmantelar Hamas, Hezbollah e Jihad Islâmica, além de enfraquecer as posições dos Houthis no último mês, e após a queda do regime Assad na Síria, Israel viu o enfraquecimento do inimigo e, sob a ambivalência demonstrada por Teerâ nas recentes rodadas do novo acordo nuclear, encontrou uma brecha para atacar, com o expresso objetivo de derrubar o regime, nas palavras de seu próprio premier, Benjamin Netanyahu, eliminando de vez a ameaça iraniana. Os EUA e outras potências ocidentais demonstraram apoio a Israel e os americanos entraram no conflito ao bombardear os três principais centros de enriquecimento de urânio do Irã. Após a bem-sucedida operação, Trump impôs um cessar fogo entre os países e o consequente encerramento do conflito.

A postura de Trump é facilmente compreendida. Tendo construído sua carreira política se opondo ao intervencionismo americano no planeta, entrando em choque direto, inclusive, com os principais ideólogos da atuação internacional dos EUA dentro do próprio partido republicano, Trump buscou construir uma imagem pública de peacemaker, criticando ferozmente as longas guerras iniciadas pelos EUA nos últimos anos, no Iraque e Afeganistão. Ao atacar instalações do programa nuclear iraniano e em seguida impor aos demais beligerantes o fim dos ataques mútuos, o americano espera conseguir sinalizar ao eleitor que a liderança americana é forte e ativa, porém não adentrará em conflitos duradouros e custosos, em termos econômicos e humanos, delimitando a guerra à neutralização das ambições nucleares iranianas sem, contudo, buscar a queda do regime em um conflito indubitavelmente longo e com consequências pouco previsíveis.

As intenções de Trump, contudo, esbarram na realidade. Em primeiro lugar, como já dito, Israel parece ter entendido que o enfraquecimento da rede de terrorismo do Irã na região é uma janela de oportunidade para degolar o regime e acabar de vez com a ameaça existencial que a República Islâmica representa para o país. Em segundo lugar, os ataques não destruíram a capacidade iraniana de atingir o grau de enriquecimento de urânio necessário para a produção de um artefato nuclear, de acordo com as próprias autoridades americanas, que já afirmaram que a operação militar apenas atrasou em alguns meses o caminho de Teerã em direção a uma bomba. Finalmente, o fim das ambições nucleares iranianas interessa a todos os países, mesmo aqueles que condenaram o ataque israelense. A falta de qualquer apoio por parte de alguma potência regional ou global, escancarou o isolamento do país e o colocou em uma posição de acuamento que pode levar a um fechamento ainda maior do regime e uma ainda mais intensa corrida pelo artefato nuclear.

Trump, assim, se encontra pressionado internamente a não adentrar em uma campanha para derrubar o regime de Teerã. No entanto, as intenções do presidente americano vão de encontro ao que veem Israel e Irã e seus malabarismos midiáticos não serão suficientes para impedir Israel de retomar seu propósito de fazer cair a república dos aiatolás sob o pretexto – crível ou não – de evitar que a teocracia xiita tenha acesso a um artefato nuclear. Num grande palco de diversionismos, Israel finge que cessou suas hostilidades, o Irã finge que abandonou seus propósitos nucleares e Trump funge que impediu uma guerra a qual ele não pode evitar que continue.

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Leonardo Luz
Doutor em Economia.

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