Controle crescente do Legislativo sobre as emendas e a execução orçamentária limita a influência do Planalto e sinaliza um semipresidencialismo de fato no país
O Congresso Nacional está se movimentando para derrubar o aumento da alíquota do IOF para operações cambiais imposto pelo governo. Caso a investida seja exitosa, será mais uma derrota para Lula, que não foi capaz de construir uma coalizão legislativa estável, mesmo tendo lançado mão da distribuição de cargos, em todos os escalões, para uma miríade de partidos, alguns deles históricos adversários dos governos petistas, como o União Brasil, herdeiro do antigo PFL, a mais contumaz agremiação opositora dos governos Lula 1 e 2, e que contou com nada menos do que três ministérios durante a maior parte da atual gestão, sem entregar o apoio esperado pelo governo. O mesmo pode ser dito para antigos aliados, como o MDB, o Progressistas e o Republicanos.
Uma medida para as dificuldades que o governo enfrenta no Legislativo pode ser encontrada na proporção de Medidas Provisórias que não foram derrubadas ou caducaram, apenas 15,87%, muito abaixo das modestas 47,44% alcançadas pelo governo Bolsonaro. Ao observamos os índices alcançados por governos anteriores, é possível encontrar uma tendência desoladora para os Executivos Federais. A taxa de sucesso de MP’s caiu de 93,89%, no primeiro mandato de Lula, caindo gradativamente até os valores pífios de seu terceiro governo. Lula 2 registrou 86,36% de MP’s exitosas, Dilma 1, 82,72% e Temer conseguiu sucesso em 58% de suas empreitadas. Mesmo o segundo governo Dilma, que enfrentou a rebelião parlamentar que culminou em seu afastamento, mostrou-se mais profícuo, conseguindo 76,2% de MP’s validadas.
Os números refletem uma clara deterioração da influência do poder Executivo perante o Legislativo que, motivada por fatores institucionais que reduziram a fragmentação partidária e aumentaram os poderes dos caciques que comandam as agremiações. O fim das coligações partidárias, a implementação da cláusula de desempenho e a vedação ao financiamento privado de campanha alimentaram o poder das lideranças partidárias que, com uma estrutura partidária mais concentrada e com a chave do cofre nas mãos, aumentaram significativamente seu poder de barganha e reduziram a dependência de orçamentos ministeriais e de esquemas de corrupção, como o Petrolão, para financiar as dispendiosas campanhas que o sistema partidário brasileiro impões aos candidatos. Cada vez mais, os partidos estão menos interessados em conquistar posições no poder Executivo e mais preocupados em eleger deputados federais para abocanhar fatias mais generosas dos fundos partidário e eleitoral, se tornando verdadeiras empresas políticas, controladas por caciques cada vez mais poderosos e menos dependentes dos governantes de plantão para eleger bancadas importantes.
O grande pivô desse fenômeno é, contudo, a transferência de fatias cada vez maiores da execução do orçamento do Executivo para o Legislativo, redefinindo a dinâmica do relacionamento entre os poderes, da promulgação da Constituição até os dias de hoje. Desde a promulgação da Carta de 1988 — marcada por um fortalecimento formal do Legislativo — até a consolidação das emendas parlamentares impositivas, observa-se uma mudança progressiva na balança de poder entre os dois Poderes. O Executivo, historicamente dominante na formulação de políticas públicas e na gestão do orçamento, viu sua capacidade de influenciar a agenda do Congresso Nacional e controlar os fluxos orçamentários se reduzir substancialmente nos últimos dez anos.
Até a primeira metade da década passada, o Executivo detinha o controle quase absoluto da execução orçamentária, possuindo a prerrogativa discricionária da execução do orçamento aprovado pelo Congresso na Lei Orçamentária Anual (LOA). Ainda que o Congresso pudesse propor emendas à LOA, a liberação dos recursos era discricionária e subordinada à vontade do presidente. Esse arranjo servia como mecanismo de barganha política: emendas e cargos em troca de apoio legislativo. Tais emendas sempre foram fundamentais para as pretensões eleitorais de parlamentares, especialmente deputados, que direcionam os recursos para benfeitorias em suas bases eleitorais. O sistema de voto em lista aberta, onde o deputado pode receber votos de todos os eleitores de seu estado, reforça sobremaneira a dependência de tais recursos para aumentar suas chances de reeleição, posto que esse modelo eleitoral acaba por gerar uma enorme fragmentação geográfica dos votos. A alta taxa de renovação da Câmara a cada eleição – cerca de 46% em termos médios, desde 1990 – reforça a preocupação dos parlamentares em distribuir fartos recursos para suas bases. Em um mercado tão selvagemente concorrencial, onde uma pessoa tem quase 50% de chances de ser demitido em quantro anos, é compreensível que não se percam oportunidades de agradar o eleitorado, seu patrão, em última instância.
Contudo, a partir do primeiro governo Dilma, esse modelo começou a apresentar sinais de esgotamento e o Congresso passou a demandar cada vez mais o controle da execução destas emendas. As crises políticas sucessivas, culminando no impeachment de Dilma Rousseff em 2016, expuseram a fragilidade do presidencialismo de coalizão e aumentaram a assertividade do Congresso. A perda de apoio legislativo por parte do Executivo passou a comprometer não apenas a tramitação de pautas prioritárias, mas a própria estabilidade dos governos. O ponto crítico desse processo se deu, ironicamente, em meio ao desespero de Dilma em evitar o avanço de seu impeachment, que entregou ao Congresso a Emenda Constitucional nº 86, de 2015, que tornou obrigatória a execução de parte das emendas individuais ao orçamento (RP6), limitada a 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL), amputando do Executivo o poder discricionário sobre a liberação desses recursos. Quatro anos depois, já no governo Bolsonaro, a Emenda Constitucional nº 100/2019 tornou obrigatória a execução das emendas de bancada (RP7), limitada a 1% da RCL. A partir de então, o Congresso passou a controlar, de forma cada vez mais autônoma, uma fração significativa dos recursos discricionários do orçamento federal.
Em 2020, um novo avanço do Legislativo sobre o orçamento foi dado com a implementação das emendas RP9, popularmente conhecidas por orçamento secreto. Sem uma base legal clara, as emendas RP9 foram instituídas a partir de uma categoria contábil prevista no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP) e foram originalmente criadas para ajustes técnicos no orçamento. O instrumento passou a ser utilizado a partir da LOA de 2020, ficando sob o controle do relator do Orçamento, atingindo, apenas em 2020-21, R$30 bilhões. O orçamento secreto produziu, ainda, o efeito colateral de fortalecer as presidências das Casas Legislativas, que passaram a exercer enrome infuencia na destinação dos recursos entre os parlamentares, aumentado a influência do alto clero do Poder Legislativo em detrimento do Executivo.
No final de 2022, saindo em defesa do novo governo eleito, decidiu pela inconstitucionalidade das emendas RP9. A estratégia, no entanto, foi inócua, esbarrando na fome insaciável do Congresso pelo controle orçamentário e na criatividade das lideranças partidárias, que lançaram mão de uma modalidade de emendas criada pela Emenda Constitucional nº 105, de 2019. Tais emendas, definidas contabilmente como transferências especiais, permitem que os recursos sejam transferidos diretamente dos cofres do Governo Federal para estados e municípios indicados pelos parlamentares sem os processos formais de controle orçamentário, recebendo o jocoso apelido de emendas PIX e compõem a modalidade individual de emendas, ou seja, possuem caráter impositivo.
O avanço do Legislativo sobre a execução orçamentária significou um salto dos menos de 5% que representavam do total das despesas discricionárias, até 2014, para cerca de 25% em 2024. Em se considerando que o Executivo possui apenas cerca de 10% de seu orçamento livre para livre alocação (quase 90% do orçamento é destinado a despesas obrigatórias, como transferências constitucionais, previdência e folha de pagamento da máquina pública), o controle de um quarto dos recursos disponíveis por parte do Congresso, praticamente inviabiliza os investimentos públicos e a exploração discricionária das receitas pelo Poder Executivo, tornando-o dependente de arranjos políticos firmados com os parlamentares para alimentar seus programas, como tem ocorrido nas obras do PAC 2.
Com cada vez mais dinheiro para suas bases eleitorais sem precisar retribuir ao governo, os parlamentares nunca estiveram tão empoderados e independentes dos favores da presidência da República. O fenômeno é estrutural e independente de quem vencer as próximas eleições, não há indícios de que seja capaz de convencer o Congresso a abdicar de suas conquistas recentes. O mais provável é que o Brasil caminhe para uma forma de semipresidencialismo informal, em que o presidente compartilha de fato — ainda que não de direito — o poder com o Congresso. O desafio das próximas décadas será equilibrar essa nova relação com a preservação da responsabilidade fiscal, da eficiência na execução das políticas públicas e da transparência no uso dos recursos.