Leonardo Luz: ‘A corrida do ouro’

Leonardo Luz: ‘A corrida do ouro’

Com o dólar enfraquecido pelas tensões comerciais e a demanda por reservas seguras em alta, o ouro mantém trajetória ascendente. Analistas projetam valorização sustentada, mesmo após ajustes pontuais no preço

O ouro tem desempenhado um papel central nos sistemas econômicos ao longo de toda a história humana, como moeda física ou reserva de valor para proteção contra riscos sistêmicos. Sua singularidade advém da reunião de um conjunto raro de propriedades físicas, químicas e econômicas que lhe conferem valor intrínseco. Quimicamente estável, o ouro não se deteriora no tempo, se afigurando em um ativo com uma durabilidade única. Sua capacidade de ser dividido e fundido sem que suas propriedades sejam alteradas lhe conferem a característica de ser fungível, isto é, intercambiável por outras partes de mesmo tipo e valor, diferentemente de outros ativos que, apesar de preservarem valor no tempo, como obras de arte e imóveis, não são divisíveis. Sua raridade, por fim, lhe confere a escassez necessária para resistir à inflação monetária. Tais características lhe permitiram assumir funções das mais diversas, desde culturais e religiosas até para a cunhagem de moedas, atingindo um grau único de universalidade, sendo adotado em diversas geografias e civilizações ao longo da história.

A partir dos séculos XVII e XVIII, a internacionalização dos sistemas monetários emprestou ao ouro o papel de lastro para os meios circulantes nacionais, dividindo, inicialmente, suas funções com outros metais como a prata e o cobre. A partir do século XIX, com sua consolidação como principal referência para conversão das moedas nacionais, o ouro se tornou o lastro principal das mais importantes economias do planeta, especialmente a partir da adoção do padrão-ouro por parte do Império Britânico. Este regime monetário vinculava o valor das moedas nacionais a uma quantidade fixa de ouro, promovendo estabilidade monetária e controle inflacionário. Com a deflagração da Primeira Guerra Mundial, a convenção internacional que permitiu a manutenção das garantias de conversibilidade das moedas nacionais por meio dos estoques de ouro foi seriamente abalada, seja pela fragilização das relações de cooperação entre os países – muitos deles beligerantes – ou pela necessidade de financiamento dos altos custos de manutenção de uma guerra de proporções inéditas, que exigiram dos países a capacidade de emissão de moeda e de endividamento.

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, os aliados, baseados na experiência do conflito anterior, viram a necessidade de estabelecer um regime monetário sólido para a economia do pós-guerra e, em 1944, sob a liderança dos EUA, 44 países assinaram o acordo de Bretton-Woods, que institucionalizou o dólar americano como moeda de referência internacional, lastreado em ouro a uma paridade fixa de U$35 por onça-troy. A conversibilidade seria garantida pelos EUA, que detinham cerca de 80% das reservas de ouro em 1944. As décadas seguintes, contudo, apresentaram desafios ao sistema. Os constantes déficits fiscais e em conta corrente dos EUA levaram a um aumento da quantidade de dólares em circulação no planeta, incentivando os países a aumentarem suas reservas de ouro, especialmente a partir de 1958. A situação se agravou ao longo da década de 1960, com o aumento significativo das despesas sociais dos EUA durante o governo Lyndon Johnson e com a Guerra do Vietnã. Por resultado, a participação americana nas reservas totais do metal se viu reduzida para 23% em 1971 e, em agosto do mesmo ano, o presidente Richard Nixon suspendeu a conversibilidade do dólar em ouro, encerrando unilateralmente o sistema de Bretton Woods. Isso selou a transição para o regime de câmbio flutuante e reservas fiduciárias.

Desde então, o ouro passou a ser negociado livremente nos mercados financeiros, assumindo principalmente as funções de hedge contra a inflação, proteção contra crises financeiras e diversificação de portfólios. Podemos dividir o comportamento dos preços do metal em cinco grandes ciclos desde 1971. Na primeira década de vigência do regime de câmbio flutuante, as crises do petróleo e o processo inflacionário vivido pelas principais economias globais resultaram em uma forte alta nos preços, que saíram de U$35 por onça-troy em 1971 para U$850 ao fim de 1980. Com o aumento das taxas de juros globais nos anos 1980 e o forte crescimento econômico registrado, especialmente, após o fim da Guerra Fria, o ouro viveu um período de retração nos preços, atingindo U$250 em 2000. Entre 2001 e 2011, as crises das pontocom, do subprime e as guerras contra o terror travadas pelos EUA serviram de alavanca para os preços, e a desvalorização das principais moedas globais, sobretudo após 2008, quando se inciou um período de forte aumento da base monetária no contexto das políticas expansionistas conhecidas por quanittive easy, catalisou o movimento, levando a cotação do metal a US1920 em 2011. Após 2012, com a recuperação do dólar, o ouro passou por período de correção e lateralização até 2018, quando uma série de choques – a pandemia da COVID-19, o aumento das tensões geopolíticas globais e a eclosão da guerra da Ucrânia – levou o metal a um novo período de alta, que se encontra em seu ápice em 2025.

Se considerarmos o período entre setembro de 2022, quando a cotação operou na casa de U$1600, e o pico registrado em abril de 2025 (cerca de U$3500), o ouro apresentou uma valorização acumulada de quase 120%, um bull market comparável ao que vimos nas big techs americanas. Tal comportamento pode ser atribuído, em grande parte, às mudanças estruturais na ordem mundial que estão em curso, em particular às consequências da guerra na Ucrânia, que resultou em sanções econômicas à Rússia e ao congelamento de seus ativos mundo afora, principalmente por sua exclusão do sistema de movimentações financeiras SWFT. O receio de manterem-se dependentes de uma moeda controlada pelos EUA impulsionou diversos países a reduzirem sua exposição ao dólar, aumentando a demanda por ouro como reserva cambial alternativa, em especial China, Índia, Turquia, Polônia e Arábia Saudita que, desde 2022, promoveram compras anuais superiores a 1.000 toneladas, o dobro da média da década anterior, especialmente. Com a guerra tarifária declarada por Donald Trump, que aumentou a incerteza e enfraqueceu o dólar como reserva de valor internacional, o ouro se tornou ainda mais atrativo e mesmo a recente correção em seus preços devido a redução das tensões comerciais e à estabilização do dólar, nas últimas semanas, não deve alterar a dinâmica verificada nos últimos anos, havendo certo consenso acerca da tendência de valorização, no curto e longo prazos. O Goldman Sachs, por exemplo, projeta que as cotações atinjam cerca de U$4800 até o fim de 2026.

Diante do cenário de fragmentação da ordem mundial que vigorou desde o fim da Guerra Fria, com uma retração do processo de globalização e aumento das incertezas geopolíticas, o ouro parece ter encontrado suporte para uma valorização estrutural nos próximos anos. Não há sinais de que os bancos centrais interrompam suas aquisições do metal, tampouco que a dívida americana se mantenha como um porto seguro para absorção da liquidez global como observamos nas últimas décadas. Estamos vivendo uma nova corrida do ouro e tudo indica que ela continuará de vento em popa no futuro.

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Leonardo Luz
Doutor em Economia.

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