Leonardo Luz: ‘Cinco dias que abalaram o mundo’

Leonardo Luz: ‘Cinco dias que abalaram o mundo’

Os americanos, ao escantear seus seculares aliados europeus, podem ter implodido, em apenas cinco dias, uma ordem geopolítica de um século

Entre os dias 28 de fevereiro, quando o mundo se chocou com a inusitada reunião entre os presidentes americano e ucraniano, Donald Trump e Volodymyr Zelensky, e o anúncio deste último em ceder as pressões americanas por uma negociação entre seu país e a Rússia, na última terça-feira, vimos um século de ordem geopolítica global colocado em cheque.

Em menos de cinco dias a Ucrânia se viu acossada pelos EUA, que buscam unilateralmente um acordo para cessar a guerra que se arrasta por mais de três anos, a Europa se comprometeu – sem sucesso – a assumir o suporte ao país invadido, os EUA suspenderam sua ajuda militar e, por fim, Zelensky se viu obrigado a aceitar os termos impostos por Washington.

Postas de lado, Europa e Ucrânia assistem, impotentes, a Trump e Putin redefinirem o ordenamento político europeu de acordo com seus próprios interesses. As consequências ainda são desconhecidas mas, invariavelmente, com o abandono americano de seu mais importante aliado global, um novo capítulo da história das relações internacionais pode estar sendo escrito. 

O significado de uma ruptura dos EUA com a Europa deve ser entendido no contexto dos fundamentos da geopolítica clássica. Assumindo que a geografia de uma civilização determina/condiciona suas estratégias de sobrevivência/expansão, o fator fundamental a tipificar uma potência é seu caráter continental ou marítimo.

Ao longo dos séculos, as primeiras se conformaram em protagonistas globais através do controle de vastas extensões territoriais, sendo a hegemonia sobre o continente eurasiano, que se estende do leste chinês até a costa atlântica da Europa, condição necessária para que viabilize sua influência em nível global.

A teoria do “Heartland”, desenvolvida por Halford Mackinder no início do século passado, foi o pilar da estratégia utilizada pelas potências continentais do século XX  – Alemanha, Rússia e Áustria – em todos os conflitos críticos em que se envolveram. De acordo com Mackinder, o controle da região central do continente eurasiano (Heartland), que engloba o leste europeu e a parte ocidental das estepes da Ásia, seria a chave para a dominação global por parte das potências continentais. A estratégia adotada pelas potências centrais na Primeira Guerra, pela Alemanha Nazista na Segunda e pela URSS na Guerra Fria, fora exatamente estabelecer o controle sobre este Heartland e, a partir da posse de incontáveis recursos, expandir sua influência em níveis globais.

As potências marítimas, por sua vez, possuem o controle das rotas comerciais intercontinentais e se destacam pelo poderio naval. Ao longo dos séculos, gregos, cartaginenses, ibéricos, holandeses e britânicos se destacaram como potências marítimas típicas. Coube a Alfred Mahan teorizar o mecanismo que as permitiriam estabelecer sua hegemonia, que seria garantida pelo controle de rotas intercontinentais.

Na esteira desta formulação, os EUA assumiram o protagonismo no jogo de poder global a partir da Primeira Guerra, quando a aliança transatlântica que uniu EUA, França e Império Britânico se estabeleceu e atravessou os últimos cem anos, sob liderança americana, com êxitos nos três grandes conflitos globais que enfrentou – I e II Guerras Mundiais e a Guerra Fria -, se sobrepondo às potências continentais.

O sucesso desta aliança marítima deve, contudo, ser entendida sob uma formulação mais abrangente do que aquela apresentada por Mahan. Para além da dicotomia continente-mares, Nicholas Spykman questionou a viabilidade do controle das rotas de navegação ou do continente eurasiano, separadamente, como instrumento efetivo de alcançar a hegemonia global.

Conhecido por “Rimland”, o modelo de Spykman assume que no controle das áreas periféricas da Eurásia reside o mecanismo elementar de domínio global, amalgamando fundamentos das abordagens de Mahan e de Mackinder. Ao controlar as costas da Eurásia, uma potência marítima conseguiria impedir que uma continental se lançasse ao controle dos mares, operando com um escudo natural e, simultaneamente, manteria postos estratégicos para dar suporte às rotas marítimas mais importantes.

Foi exatamente a abordagem de Spykman que fundamentou a estratégia adotada pela coalizão liderada pelos EUA após a II Guerra Mundial, quando se consolidou e absorveu novos componentes. Com a fundação da OTAN, em 1949, foi criado um cinturão de segurança em toda a costa europeia, abrangendo o oceano Atlântico e os mares Mediterrâneo e do Norte. Ao longo dos anos, o controle da Rimland foi consolidado, em especial com a entrada da Turquia na aliança, em 1952, que assumiu importância ímpar por fechar o acesso russo ao Mediterrâneo via controle dos estreitos de Dardanelos e de Bósforo, e da Polônia (1999) e países bálticos (2004), que deram vantagem estratégica à coalizão no Mar Báltico.

O mesmo movimento pôde ser observado nas extremidades meridional e oriental do continente eurasiano, onde os EUA estabeleceu uma rede de cooperação militar similar à OTAN. Foram criadas as alianças do Pacífico QUAD (Japão, Índia e Austrália) e AUKUS (Reino Unido e Austrália), além de acordos militares e diplomáticos com Coreia do Sul, Filipinas, os países da Península Arábica e, informalmente, Taiwan.

Em uma expansão da aliança original entre EUA, Império Britânico e França, foram incorporadas as periferias do continente eurasiano, formando um grande bloco de contenção das potências continentais, consolidando a estratégia do Rimland. O desenho das alianças construídas nos últimos cem anos permitiram, assim, que os EUA estabelecessem a liderança das costas da Eurásia banhadas pelo Mediterrâneo e pelos Oceanos Índico, Pacífico e Atlântico, viabilizando sua influência sobre as principais rotas e canais de navegação, como os do Panamá, Suez e o Estreito de Malaca e, desta forma, contendo as ambições das potências terrestres, Rússia e China.

Os eventos que se sucederam à reunião dos líderes americano e ucraniano cristalizaram o que antes era apenas verborragia trumpiana e torna crível a ameaça americana de abandonar o grande arco de alianças que constituiu a estratégia do Rimland, sobretudo no que diz respeito à Europa e a OTAN. E mesmo que não ocorra uma saída formal do bloco por parte dos americanos, a Europa parece ter interpretado que está por sua conta, não podendo mais esperar o apoio incondicional dos EUA, o que coloca o continente em uma situação claramente vulnerável, posto que não possui capacidade de produção e domínio tecnológico militar suficientes para a sua proteção.

Depois de décadas debaixo do guarda-chuvas do Pentágono, os europeus ficaram muito para trás em termos de segurança nacional, com contingentes militares limitados (o maior exército nacional da OTAN é o polonês, que conta com cerca de 220 mil combatentes, ante uma mobilização russa que atingiu 600 mil apenas em território ucraniano) e gastos em defesa muito abaixo do mínimo necessário para sua proteção (em 2024, a União Europeia gastou cerca de U$300 bilhões em defesa, o que corresponde a menos de 2% do PIB do bloco).

É bem verdade que foram tomadas medidas para incrementar o orçamento militar do continente e otimizar suas aplicações, como a criação do Fundo Europeu de Defesa, da Cooperação Estruturada Permanente e a aprovação de um pacote de quase U$800 bilhões em empréstimos e cotas orçamentárias para os países membros do bloco. Entretanto, é consenso que a curto e médio prazos a segurança europeia continue a depender do aliado americano que já não parece muito disposto a pagar a conta.

Ao fim da semana que abalou o mundo, ao constatar que a Europa tem muito pouco a fazer por seu país, Zelenski entregou seu destino aos EUA. E os americanos, ao escantear seus seculares aliados europeus, podem ter implodido, em apenas cinco dias, uma ordem geopolítica de um século. 

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Leonardo Luz
Doutor em Economia.

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