Leonardo Luz: ‘A tragédia alemã em quatro atos’

Leonardo Luz: ‘A tragédia alemã em quatro atos’

Em seu quarto ato, a saga alemã passa por seu período mais sombrio e em suas origens estão a imobilidade política e a fleuma de seus setores produtivos mais importantes

No poema trágico Fausto, de autoria de Wolfgang Göethe, uma das mais emblemáticas peças da literatura em língua alemã, o personagem que intitula a obra é um grande sábio, um dos súditos preferidos de Deus, que dedica sua vida à busca do conhecimento em sua plenitude. Após uma aposta entre Deus e o demônio Mefistófeles, este último vem ao mundo para corromper Fausto, lhe oferecendo o acesso ao conhecimento que jamais conseguiria obter sem sua ajuda. O pacto firmado entre ambos, contudo, apenas se encerraria no momento em que Fausto encontrasse a satisfação de seus anseios pelo conhecimento. Assim, Fausto se vê preso a busca por uma plena felicidade que nunca poderá ser alcançada, se apegando a crença de que poderia viver sob um progresso contínuo.

A história da Alemanha do pós-Guerra pode ser contada como uma tragédia, tal qual a celebradíssima peça de Göethe, e dividida em quatro grandes atos. O primeiro se inicia ainda nas cinzas da guerra. A Alemanha Ocidental, sob ocupação anglo-americana, iniciou um profundo processo de transformações econômicas durante o governo de Konrad Adenauer e que ficou conhecido por Wirtschaftswunder, o “milagre econômico”.

As políticas adotadas pelo Chanceler incluíram uma reforma monetária em 1948, uma reformulação do sistema tributário sobre a renda e a abolição do controle de preços dos bens. O conjunto de reformas liberais ortodoxas promoveu uma recuperação surpreendente da capacidade industrial alemã, o controle da inflação e o aumento dos salários, permitindo que o baixo estoque de capital herdado da destruição promovida pela guerra fosse revertido em uma crescente formação de capital fixo que, aproveitando-se da grande expertise industrial do país e de sua qualificada mão-de-obra, pavimentou a rápida transformação da economia alemã de um vazio produtivo em uma das mais importantes economias do planeta já na década de 1950, que registrou um crescimento médio anual de assustadores 8,2%.

As décadas seguintes foram marcadas pela consolidação dos ganhos de produtividade, sobretudo na indústria. A construção de uma vasta rede de oleodutos e reatores nucleares proveram a energia necessária para os ganhos de escala que tornaram os produtos alemães altamente competitivos no mercado internacional. A alta produtividade alcançada em alguns setores já tradicionalmente eficientes desde antes do período do “milagre” – destaque para as indústrias automobilística, química e de equipamentos industriais – levou a uma especialização da produção e a vantagens competitivas em relação a concorrentes internacionais, tornando a Alemanha um dos maiores exportadores do planeta, tendo seus produtos reconhecidos pela alta qualidade e eficiência.

O período que se estendeu entre a década de 1980 e 2005 – o segundo ato da epopeia alemã -foi marcado por dificuldades associadas à reunificação com a contraparte oriental do país, o que exigiu grandes esforços fiscais e políticos. As adversidades, contudo, foram compensadas pelo aumento do comércio global e pela oferta de gás barato da nova parceira comercial, a Rússia, além das reformas trabalhistas promovidas pelo governo de Gerhard Schröder.

O terceiro ato compreende o período conhecido por “novo milagre alemão”, que delimitarei entre os anos de 2005 – início da era Angela Merkel – e 2018, quando a indústria alemã atingiu seu pico de produção. A hiperglobalização, a oferta de energia russa, a liberalização do comércio marítimo e a performance da economia chinesa, alimentaram altos índices de crescimento econômico e de produtividade, transformando o país no maior exportador do planeta e o consolidando como a maior e mais produtiva economia da Europa.

O que parecia um caminho de contínuo sucesso sofreu, no entanto, um conjunto de revesses a partir de 2015, quando a economia chinesa inciou seu processo de desaceleração. Altamente dependente de exportações e da indústria de alta precisão, a economia alemã vem enfrentando sua maior crise desde a reunificação. Em seu quarto ato, a saga alemã passa por seu período mais sombrio e em suas origens estão a imobilidade política e a fleuma de seus setores produtivos mais importantes. Acomodada em seu próprio sucesso, a Alemanha não se mostrou capaz de responder à reconfiguração da economia global nos últimos anos.

A ausência de reformas econômicas estruturais, o altíssimo nível de burocratização e a adesão a modismos, como os programas de implementação de fontes energéticas renováveis, foram o pano de fundo da debaclé do modelo de desenvolvimento alemão.

O germe da inércia da economia alemã ante as transformações do século XXI está em seu próprio sucesso nos primeiros anos do milênio. Com energia barata advinda da Rússia e a forte demanda chinesa por produtos alemães, a indústria se acomodou e não acompanhou as principais transformações tecnológicas da produção, não operando uma transição de uma economia exportadora industrial para uma economia de serviços e digitalizada. A pandemia da COVID-19 e o aumento das tensões geopolíticas globais levaram a uma contração do comércio internacional e a economia não estava preparada para tal choque. As consequências podem ainda ser maiores a depender da magnitude da guerra comercial perpetrada por Donald Trump, que tende a atingir desproporcionalmente a Alemanha caso sejam impostas tarifas sobre produtos europeus. De acordo com a Federação das Indústrias Alemãs, o impacto recessivo de eventuais barreiras americanas poderia chegar a 0,5% do PIB nacional.

A inércia da pauta industrial alemã ante as disrupções tecnológicas encontra sua melhor representação na eletrificação da frota automotiva. Sem condições de acompanhar as inovações do setor, as montadoras alemãs vêm perdendo espaço no mercado, sobretudo após a China assumir o protagonismo na produção de veículos elétricos, ocupando não apenas o espaço das empresas alemãs nas cadeias globais mas, principalmente, no próprio mercado chinês. Se há bem pouco tempo possuir um carro alemão era um sonho de consumo do trabalhador chinês, as vantagens de custo e a melhoria na qualidade estão permitindo às montadoras chinesas ocuparem o espaço das alemãs em seu mercado interno.

Se a pauta exportadora alemã não acompanhou o espírito do tempo, a política energética adotada pelos governos Merkel foi a melhor representação da panaceia do modelo ESG que assolou o mundo neste século. A adesão alemã aos programas de transição energética levou o país a ampliar a participação de matrizes energéticas ineficientes e dispendiosas, como a geração solar. Por resultado, o país possui a energia mais cara do continente europeu e não foi capaz de se livrar da dependência do gás e petróleo russos, objetos de sanções após o início da guerra na Ucrânia. A decisão de interromper a operação das usinas nucleares foi a cereja do bolo, extirpando do balanço energético a fonte mais eficiente de energia do país. Por ironia do destino, o último reator em operação em território alemão foi desativado dias antes do início da invasão russa à Ucrânia.

Não apenas o êxito da indústria alemã operou uma paralisia em suas bases produtivas, mas a outrora celebrada governança política também atuou como um empecilho para a modernização do país. Diferentemente de grande parte de seus pares europeus, o sistema partidário alemão sempre se mostrou capaz de construir alianças sólidas em torno de pautas convergentes, o que proporcionou uma invejável estabilidade política. Entretanto, a manutenção de tais consensos nacionais levou o país a evitar reformas mais contundentes, que inevitavelmente resultariam em embates mais aguerridos entre os partidos que compuseram as coalizões governistas. Ademais, a coesão política associada à liderança econômica exercida pela Alemanha no bloco europeu levou a uma maior preocupação com questões externas em detrimento de grandes reformas econômicas, como têm defendido muitos analistas.

Tal qual Fausto, a Alemanha se iludiu com seu próprio sucesso. Desafiando as leis econômicas, como o protagonista de Göethe confrontou as de Deus, os alemães caíram na armadilha de seu próprio Mefistófeles. Preso ao pacto firmado com o demônio, a segunda parte da peça narra a imersão de Fausto em um mundo por ele desconhecido, onde as grandes questões de seu tempo lhes são confrontadas, e sua própria ambição o impede de compreender as razões de seus infortúnios. Somente após ser castigado pelos deuses mitológicos gregos, Fausto se conscientiza de seus atos e, ao aceitar a culpa por suas tribulações, consegue, enfim, quebrar o pacto firmado com Mefistófeles e alcançar a salvação de sua alma. A conclusão do quarto ato da saga alemã ainda não foi escrita e seu final dependerá da capacidade de sua sociedade em aprender com seus próprios erros – e também com seus acertos.

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Leonardo Luz
Doutor em Economia.

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