Passados mais de 30 anos do fim da Guerra Fria que opôs EUA e URSS em uma ordem mundial bipolar, a Segunda Guerra Fria já faz parte do nosso vocabulário. A concorrência por influência e poder globais entre americanos e chineses ensaia um retorno à bipolaridade, após um período de relativa cooperação e estabilidade nas relações entre os principais atores do mundo. O posicionamento da China como potência concorrente e belicosa em relação ao ocidente não estava nos planos dos EUA e seus aliados.
A estratégia adotada por Washington, desde a década de 1970, foi a de tentar incorporar a China comunista ao mercado global, de modo que o regime se abriria como resultado dos benefícios econômicos da integração com o ocidente. Em 2012, contudo, tudo mudou com a eleição de Xi Jinping para a liderança do país. Sob seu comando, o regime tem se tornado cada vez mais fechado, autocrático e ambicioso em fazer crescer sua influência global, resgatando a ideia de que a China está destinada a ser a maior das potências, o que levou as tensões entre Washington e Pequim a níveis nunca antes vistos.
A oposição entre as duas grandes potências – e seus aliados por tabela – tem promovido um processo de desglobalização da produção e da cooperação entre os países.
Fábricas de empresas ocidentais têm sido realocadas da China para países aliados, fenômeno que ficou conhecido como reshoring; Programas de intercâmbio diplomático entre EUA e China estão sendo encerrados; A cooperação em instâncias internacionais vem diminuindo. Em outras palavras, o mundo está se fechando.
Com o aprofundamento das tensões, várias atividades estão assumindo uma função estratégica em termos de segurança nacional. Nesse contexto, Pequim lançou em 2014 a política de “segurança nacional abrangente”, que incorporou a busca pela liderança global em ciência e tecnologia como matéria não apenas de crescimento econômico e influência politica no mundo, mas como elemento central da segurança nacional ante um cenário de aprofundamento das tensões com o ocidente.
Capitaneando a estratégia de segurança chinesa está a produção de semicondutores. Os semicondutores movem o mundo em que vivemos, sendo componente fundamental de todo equipamento eletrônico, de uma torradeira a um míssil balístico de alta precisão. Praticamente toda a nossa vida depende dos minúsculos chips de silício que são capazes de transportar elétrons através de transistores e conectar funções em dispositivos digitais. Dada a sua importância para o funcionamento de tudo o que nos cerca e por suas aplicações militares, os semicondutores definirão se a China atingirá seus objetivos econômicos e geopolíticos e substituirá os EUA como principal potência global.
A liderança tecnológica chinesa passa, portanto, pela capacidade de produção de chipss e Pequim estabeleceu por meta atingir 70% de autossuficiência até 2025.
Posto que a meta se mostrou inalcançável, as estimativas foram revisadas para 75% até 2030. Entretanto, trata-se de um objetivo difícil de ser atingido. A indústria de semicondutores se desenvolveu dramaticamente nas últimas décadas, produzindo chips com mais transistores e, consequentemente, maior poder de processamento. Para se ter uma ideia, os primeiros chips desenvolvidos nos EUA possuíam apenas 4 transistores, enquanto hoje as mais avançadas unidades carregam mais de 200 bilhões.
A altíssima complexidade tanto do desenho, que é a concepção do produto, quanto da impressão, que é a sua fabricação, resultou em uma cadeia de produção especializada e com poucas empresas em cada uma das etapas, de modo que nenhum país consegue ser totalmente independente na produção, especialmente de chips de ponta, com mais transistores e menos espaço entre eles, os chamados nanômetros. Tais semicondutores mais avançados são aqueles utilizados nos equipamentos militares de alta precisão e no desenvolvimento de inteligência artificial, as mais importantes aplicações para fins de segurança nacional e liderança tecnológica e militar.
A interdependência entre países e empresas na cadeia dos chips é o grande problema que a China vem enfrentando, já que seus adversários detém o controle da maior parte do processo produtivo. Os EUA detém mais da metade de toda a receita gerada pela comercialização de semicondutores no mundo via, sobretudo, os direitos de propriedade intelectual do desenho dos chips, feito por empresas como Intel e Nvidia.
A impressão, contudo, está espalhada por diversos países, sendo a produção das versões de ponta desses chips restrita a duas únicas empresas, a sul coreana Samsung e a taiwanesa Taiwan Semiconductors Corporation (TSMC), que responde a cerca de 90% da produção total de chips de última geração. Um cenário parecido governa o mercado de máquinas e equipamentos para a produção desses chips, sendo praticamente toda a cadeia de produção dependente de empresas baseadas nos EUA, Japão e Países Baixos.
A dependência da indústria de empresas sediadas nessas geografias deu aos EUA a possibilidade de responder ao avanço chinês na busca da liderança tecnológica por duas vias.
A primeira é negar à China o acesso à tecnologia necessária para produzir chips de ponta, isolando o gigante asiático e o mantendo sem capacidade de gerar escala e alcançar o ocidente na capacidade de produção. Estima-se que a China esteja entre cinco e sete anos atrasada em relação a TSMC e, para que a distância não se reduza, os EUA e seus aliados querem impedir que a China tenha acesso ao conhecimento e aos meios de produção para desenvolver a indústria, por meio, sobretudo, de sanções a empresas chinesas.
A política restritiva à China se intensificou em 2017, ainda sob administração Trump. Empresas como ZTE e Huwaei foram impedidas de ter acesso a chips de computação acelerada e maquinário para a produção. Em outubro de 2022, Joe Biden promulgou o CHIPS and Science Act, que estabelece rígidos controles às exportações de semicondutores, de tecnologias associadas à indústria e a colaboração de trabalhadores americanos a empresas chinesas do setor, além de aumentar o número de instituições sob sanção. Em 2023, as restrições às exportações para China foram ampliadas e mais empresas foram banidas do comércio de chips e equipamentos.
A segunda estratégia utilizada pelos EUA para vencer a corrida tecnológica é internalizar a produção. De acordo com um relatório do Citi Research, os EUA eram responsáveis por 37% da produção de chips na década de 1990, chegando a apenas 12% nos dias de hoje, sendo que nenhum chip de ponta é produzido em território americano.
Para além do desejo de aumentar a produção interna, escalada das ameaças chinesas a Taiwan, vista por Pequim como uma província rebelde e parte da República Popular da China, vem alimentando ainda mais o desejo de Washington em levar a produção para outras geografias, mais seguras e distantes das ambições territoriais chinesas. Para reverter o quadro, bilhões de dólares estão sendo investidos, sendo 50 no bojo do CHIPS and Science Act. O governo também está financiando a construção de uma grande fábrica da TSMC no Arizona e a Intel planeja imprimir chips de ponta a partir de 2025.
Outros países que participam da cadeia global também têm buscado enfraquecer a indústria chinesa e internalizar a produção. A União Europeia estabeleceu o European CHIPS Act e mira ampliar sua capacidade produtiva para 20% da oferta global até o final da próxima década. Índia, Japão e Coreia do Sul também anunciaram investimentos para a instalação de fábricas que, somados, ultrapassam U$150 bilhões. A TSMC não está parada e pretende manter a liderança global de chips de ponta com a construção da fábrica nos EUA e a ampliação de outra, no Japão. Quanto à imposição de sanções a empresas chinesas, Japão e Países Baixos se juntaram recentemente aos EUA para restringir a exportação de tecnologia para construção de chips.
A estratégia parece funcionar e há indícios de que os EUA estão vencendo a guerra. Já no primeiro trimestre de 2023, sob os efeitos do CHIPS act, as importações de chips da China caíram 23% em relação ao primeiro trimestre de 2022.
A TSMC parou de vender chips a Huwaei, seu segundo maior cliente, e a Nvidia deixou de comercializar mais de U$5 bilhões com empresas chinesas. Em relação a produção interna, os efeitos dos investimentos devem ser sentidos em alguns anos.
De acordo com um estudo publicado pela Semiconductor Industry Association e pelo Boston Consulting Group, os EUA podem triplicar sua capacidade produtiva doméstica ate 2032, atingindo quase 30% da produção mundial de chips de ponta, ante apenas 2% por parte da China. Um obstáculo aos objetivos americanos é o alto custo de fabricação dos chips de ponta nos EUA. De acordo com Morris Chang, fundador da TSMC, a produção em território americano seria 50% mais cara do que em Taiwan. Ademais, não se sabe se tamanha diferença nos custos vá diminuir ou se ampliar ainda mais ao longo dos anos, o que gera algum nível de incerteza sobre a viabilidade dos planos de Washington.
A China, por sua vez, vem reagindo. Os investimentos nos últimos anos ultrapassam U$140 bilhões, sendo anunciado pelo governo de Pequim mais de U$47 bilhões em maio. O país possui o maior número de fábricas em construção no planeta, o número de empresas registradas na indústria cresceu quase vinte vezes nos últimos 15 anos e conseguiu um importante feito em 2023, quando a Huawei lançou um modelo de smartphone com um chip de incríveis sete nanômetros. O crescimento, porém, se concentrou em fabricantes de chips com mais de 24 nanômetros, algo muito distante daqueles com três que a TSMC é capaz de produzir, e mesmo o chip de sete nanômetros presente no celular da Huawei é alvo de desconfiança por parte da maior parte dos analistas, que considera a possibilidade de chips terem sido importados pela empresa de forma ilegal.
Ademais, a TSMC já imprime chips de sete nanômetros desde de 2018 e mesmo que a China tivesse produzido interna e integralmente o semicondutor utilizado pela Huawei, ainda estaria cinco anos atrasada em relação ao ocidente. Nem mesmo uma eventual invasão chinesa a Taiwan e apropriação das plantas da TSMC devem afetar o atraso chinês. Autoridades taiwanesas têm sido vocais em afirmar que mesmo que fábricas da ilha sejam tomadas, os chineses não teriam know-how para operar as unidades de impressão.
O resultado da guerra dos chips deve determinar quem sairá vitorioso da Segunda Guerra Fria.
Curiosamente, o conflito entre EUA e URSS também foi em grande parte definida pelo enorme fosso entre as duas potências rivais em relação ao desenvolvimento e aplicação da indústria de chips. De acordo com o historiador Chris Miller, autor de Chip War, os EUA foram pioneiros na adaptação de recursos computacionais em atividades militares, implementando sistemas com chips cada vez mais avançados, ao passo que a URSS optou por construir um número maior de sistemas, ainda que menos avançados tecnologicamente. Segundo o autor, uma das principais explicações para êxito americano foi justamente a melhor qualidade da tecnologia embarcada nas unidades militares em relação aos rivais soviéticos. A história pode estar se repetindo. A ver.